sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

à MARGEM



Gosto dos romances de Mankell. Já aqui falei deles várias vezes. Gosto bastante de policiais. Mas há policiais e policiais. E Mankell, que me parece ter sido uma óbvia fonte de inspiração para Stieg Larsson, escreve romances em que, para além do enredo policiário, fala-nos da vida real e das grandes inquietações humanas, sociais e políticas do mundo de hoje.

O seu detective, o inspector Kurt Wallander é um ser humano carregado de angústias, dúvidas, questões que o atormentam. O título do livro não podia ser melhor. "Um Homem inquieto" é o personagem principal, oficial de alta patente da Marinha sueca que desaparece inesperadamente e arrasta Wallandar numa investigação que o leva a pisar a fronteira do mundo da grande política e da espionagem.

Mas "Um Homem inquieto" é também , sobretudo Kurt Wallander, o inspector que se interroga sobre crimes, sobre a sociedade onde eles acontecem, sobre si próprio, polícia e homem que se vê envelhecer e procura o seu lugar no mundo.

Mankell é sueco e um dos autores que mais vende livros na Europa. Vive uma parte do ano em Maputo onde é director de uma companhia de teatro. Os temas dos seus romances anteriores vinham sempre rodeados por questionamentos políticos. Mas aqui, Mankell leva as coisas mais longe. E leva mais fundo as dúvidas interiores com que envolve o seu inspector Kurt Wallandar que poderá eventualmente ser uma espécie de seu alter ego.

"Continuo a ser a mesma pessoa à deriva na periferia dos grandes acontecimentos políticos e militares. Sou o mesmo homem inquieto e inseguro e encontro-me à margem, como antes." diz Wallander já no final do livro.

O inspector que tem envelhecido de romance para romance, tem agora 60 anos, sofre de diabetes e tem falhas de memória cada vez mais preocupantes.

O inspector Wallander questiona-se sobre a sua vida, a sua relação com a ex-mulher alcoólica, a filha e a neta, e Baiba, o grande amor da sua vida, que se vem despedir antes de morrer de uma doença sem cura.

Pela primeira vez leio um romance policial em que o autor "apagas " com alzheimer o seu detective que foi também a linha condutora ao longo de vários romances.

Matar o personagem de livros que se continuam através dessa mesma personagem e dos seus rituais próprios parece ser a tentação de alguns escritores de livros em série.

Lembro-me de "Capítulo final", excelente filme de Rob Reiner, em que um autor mata a sua personagem principal de mais de 30 romances. As consequências são terríveis quando o autor se encontra indefeso perante uma fã que não admite essa morte da "sua" personagem.

Imagino que quando se escreve uma série baseado numa mesma personagem, às duas por três, temos de o afastar de nós para que a colagem dos dois não se eternize.

Mas esta forma de "apagar" a personagem que tem a idade que eu tenho, que sofre de diabetes como eu sofro, deixa-me inquieto... Mas não é para isso mesmo que serve a boa literatura?

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