segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Homo Faber


The technologist's mania for putting the Creation to use, because he can't tolerate it as a partner, can't do anything with it; technology as the knack of eliminating the world as resistance, for example, of diluting it by speed, so that we don't have to experience it ... My mistake lay in the fact that we technologists try to live without death. Her own words: "You don't treat life as a form, but as a mere addition sum, hence you have no relationship to time, because you have no relationship to death". Life is form in time.

Max Frisch




Homo Faber (Homo Faber. Ein bericht) é uma novela do escritor suiço Max Frisch (1911 - 1991) publicada em alemão em 1957. Escrita na primeira pessoa, no estilo dum relatório, como o título alemão sugere, relata-nos o drama dum bem sucedido engenheiro, Walter Faber, que trabalha para a UNESCO em projectos na Europa e nas Américas, e que, por força duma improvável cadeia de acontecimentos, vê-se no centro duma tragédia que rompe definitivamente a sua visão lógica e estruturada do mundo e da natureza.

Uma novela inquietante que não poupa o leitor das perguntas essenciais. Como pode um homem, moralmente inatacável, cujo relacionamento com o mundo faz-se através da técnica e da racionalidade, enfrentar o falhanço de ter sido incapaz de proteger quem ama dum acidente, e depois descobrir que o ente querido era na verdade a sua filha? Uma tragédia desencadeada por uma víbora, o ser instigador do pecado original (o pecado do conhecimento-técnica), e que acontece na Grécia, berço das tragédias clássicas onde invariavelmente os personagens caem nas armadilhas improváveis do destino, inteligíveis apenas para os deuses, ou para o narrador dotado da clarividência da perspectiva cronológica.

Uma novela densa, por vezes onírica na sua fragmentação narrativa, dialéctica na contraposição das visões de mundo antagónicas dos personagens, arquetípica pelas conexões estruturais acima mencionadas, mas sobretudo, existencialista no seu ponto focal.

Um livro comovente e extraordinariamente bem conseguido, à altura da bem conhecida e brilhante obra dramaturgica do autor, que inclui títulos como "Andorra" e "O Muro da China".


Orfeu B.


sábado, 24 de dezembro de 2011

MAPAS E AUSÊNCIAS



Um romance portentoso que roda à volta do conceito do tempo e da ausência.

A Argentina é um país de ausências, um país onde as marcas do tempo se confundem. Ou talvez não tanto as marcas do tempo como as marcas das identidades de um país que nem sempre coincide consigo mesmo.

País onde uma ditadura apagava acontecimentos pessoas, ruas, cidades e afirmava que o que não se vê não existe.

Um romance que, de forma sinuosa, nos leva a percorrer o tempo para a frente e para trás, em torno do exílio de um escritor e da personagem real/irreal que ele persegue e que por sua vez persegue cegamente o marido assassinado. Deste exílio diz o autor que:

“Do exílio ninguém regressa. O que abandonamos, abandona-nos”

Esta é sobretudo a história de Emília, uma mulher que perdeu tudo. A confiança no pai que sabe cúmplice da ditadura ou mais ainda do que isso. A memória da mãe que enlouquece. O marido assassinado pela polícia.

Emília não aceita que o marido tenha morrido e fica 30 anos à sua procura do Brasil à Venezuela até aos EUA. Uma cartógrafa que procura o mapa em que ela e Simón se possam reencontrar.

“O que fizeste com a tua vida, Emília?”, pergunta o autor. “Nada,” responde Emília, “…e isso é que é pior. Não fiz nada. A minha vida é que fez comigo.”

O rio redondo de buscas e equívocos, que é este romance, desenha um purgatório, uma espera sem ponto de chegada nem desespero, uma metáfora poderosa para a vida de todos nós.

No entanto, e sem tocar as patetices da literatura cor-de-rosa, o autor não deixa de visitar uma profunda fé no que de melhor a Humanidade tem, ou seja, na capacidade de amar.

Ao longo desta leitura cruzada com outras leituras e uma exposição de pintura, fui reflectindo sobre o mal e a sua expressão na palavra de alguns escritores e na representação de alguns pintores, sobre a perversidade como estética, sobre o convívio com os terríveis fantasmas da guerra ou, pior, da maldade absoluta.

E fico-me nesta afirmação de Tomás Eloy Martínez que me parece apontar para um percurso poético da escrita tão distante desse prazer mórbido que tem invadido muita arte e literatura contemporâneas, nomeadamente entre nós.

“Os romances escrevem-se para emendar no mundo a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.”

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

“necesarios son en la madurez los carteros capaces de recibir cartas que sólo un loco puede ser capaz de escribir”


                                            
"Kafka y la Muñeca Viajera"
                                                   
Jordi Sierra i Fabra
                                                     
Editora Siruela

Conta-se que um dia Franz Kafka se cruzou com uma menina que chorava uma boneca perdida, no parque Steglitz, em Berlim onde morava em 1923.
Conta-se que Kafka tentou consolá-la dizendo-lhe que era um carteiro de bonecas e que, por acaso, tinha recebido uma carta da boneca da menina, que a prometeu levar no dia seguinte e que durante três semanas escreveu cartas que leu à menina contando as aventuras da viagem da sua boneca
A história foi contada por Dora Dymant, que nessa época vivia com Kafka, à crítica Marthe Robert e ao escritor Max Brod.
Kafka morreu no ano seguinte e as cartas da boneca ou a sua destinatária jamais foram encontradas. 
80 anos mais tarde Jordi Sierra i Fabra conta essa história no livro "Kafka y la Muñeca Viajera" (um livro,  com ilustrações de Pep Montserrat,  vencedor do Prémio Nacional de Literatura Infantil y Juvenil do Ministério da Cultura Espanhol, em 2007). 
Fabra reinventa a menina, Elsi, a boneca perdida, Brígida, e um Kafka feito carteiro atento e terno diferente do que conhecemos de outros processos e metamorfoses. Nós, leitores, sabemos que a boneca está perdida mas sentimo-nos cúmplices querendo que Elsi acredite nas aventuras impossíveis de uma boneca. Pelo meio Fabra faz-nos cruzar com o relacionamento de Kafka e Dora, com a cidade Berlim entre guerras e com algumas das suas angústias na escrita, num registo de ternura e redenção. Uma história encantadora para leitores sem idade.


domingo, 4 de dezembro de 2011

JOHN CHEEVER, CONTISTA EM CONSTRUÇÃO - UM APONTAMRNTO



A Sextante Editora acaba de publicar (Outubro de 2011) um livro muito interessante de John Cheever, intitulado “Fall River e Outros Contos Dispersos”. Sobre os contos de John Cheever já me referi, a propósito do seu livro “Contos Completos I”, também editado pela Sextante. Em princípio, nunca me refiro duas vezes a um mesmo autor, mas este “Fall River e outros Contos Dispersos” tem uma característica muito especial, pois agrupa contos de 1993 (“Fall River” e “Fim de Estação”) a 1949 ( “ A Oportunidade”), o que permite assistimos à evolução da sua escrita desde a juventude. Também será de destacar a “Introdução” de George H. Hunt, esclarecedora da evolução de Cheever ao longo daquele período: influências recebidas, elaboração progressiva de um estilo próprio. Embora muitas das histórias do período de formação assentem na sua vida pessoal, numa entrevista de 1976, citada na referida “Introdução”, ele esclarecia: “O que eu costumo dizer é que a ficção não é cripto- autobiografia. O seu esplendor está em não ser autobiográfica. É um riquíssimo complexo de autobiografia, de biografia, de informação – informação factual, informação espiritual, apropriação”.
Cheever possuia a capacidade de alterar qualquer incidente que lhe ocorresse “numa história magicamente alterada”. A sua criatividade e o seu potencial narrativo foi algo que o acompanhou desde os seus 19 anos até à sua morte, aos setenta anos. Segundo Hunt, a escrita de Hemingway, “ a sua simplicidade emotiva”, a sua contenção, teria sido a grande fonte de inspiração de Cheever, nos primeiros tempos, como se pode verificar em “Fall River”:
“Havia dois anos que as pessoas o sabiam, mas no inverno tornou-se óbvio. As fábricas tinham parado e as rodas enormes mantinham-se imóveis junto aos tetos. Os teares amontoavam-se no chão como a maquinaria sem préstimo num velho teatro de ópera. Pelos pavimentos, nas traves e nos flancos brilhantes de aço, o véu da teia estava coberto como neve antiga”.
Assim se inicia o conto, com uma descrição naturalista da situação em que a acção se irá desenhar. Descrição neutral, que nada nos sugere acerca das personagens que irão dinamizar aquela estrutura.
No entanto, a construção característica de Hemingway não lhe permitia expandir as suas faculdades de escritor: “Acho que com as imagens temos uma escolha a fazer: ou ampliá-las ou reduzi-las. Neste momento (1976) acho a redução deplorável. Quando eu era mais novo, achava isso brilhante”. E será através dos últimos textos da obra que estamos a analisar que encontramos uma outra escrita de Cheever, agora liberta das influências reducionistas que lhe conferiam um estatuto de autor de referência da escola “minimalista” norte-americana dos anos 20, 30. Estamos, pois, perante uma nova escrita, em que as personagens têm uma clara expressão de sentimentos e pensamentos, fornecendo ao leitor, desde o início dos contos, um conjunto de pistas para a compreensão da evolução da acção:
“ Quando naquela manhã Roger Gaige apareceu na pista e disse a toda a gente, treinadores,moços das cavaliças e aficionados das corridas, que ia mudar de vida, muitos deles riram-se abertamente e McGrath, o seu melhor amigo, não conseguiu disfarçar um sorriso. Havia quinze anos que viam a sua cara prazenteira e invulgarmente crédula em todos os cercados das pistas de corridas do país e a impossibilidade de separem Rorger dos cercados era apenas a fraqueza natural da imaginação humana”
O modo como inicia este conto, intitulado “Saratoga,” constitui um exemplo do que acabo de dizer. A suspeição da firmeza da decisão da personagem insinua-se imediatamente no leitor e funciona como o fermento da acção que se irá desenvolver nos parágrafos que se seguem, algo que contamina o leitor e lhe tira a possibilidade de um olhar distanciado sobre os acontecimentos.
Mas ainda não é o Cheever da maturidade, pelo que teremos de esperar pelos anos 50, 60, para que encontremos uma escrita verdadeiramente pessoal, liberta de influências de escolas e autores, como se podetá verificar nos seus “Contos Completos”, I e II.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ENQUANTO O DIABO ESFREGA UM OLHO


“QUANDO O DIABO REZA”

MÁRIO DE CARVALHO

Os meus amigos são os melhores escritores do mundo. E o Mário de Carvalho é um dos primeiros entre eles.

Mário de Carvalho é um leitor atento dos clássicos portugueses do séc. XVII, a começar pelo Padre António Vieira. E com eles ou por eles terá caminhado para uma arte rara de bem tratar a nossa língua, de procurar vocabulário luminoso e expressivo, de construi a frase como poucos o fazem na nossa literatura.

Julgo saber que outra das paixões do Mário é a banda desenhada. Dela transpõe para alguns dos seus contos e novelas o traço rápido e um humor tão subtil como galhofeiro.

A juntar a isto tome-se o conhecimento que tem do popular lisboeta chegamos a esta novela que será prima dos famosos e notáveis “Casos do Beco das Sardinheiras”.

A história, que poderia ser também parente da “Crónica dos bons malandros” do Mário Zambujal, mete bandidecos de 3ª categoria, um carro a cair aos bocados uma rapariga facilzita, um dono de drogarias a caminhar para a senilidade com duas filhas que lhe anseiam pela herança para cumprirem os seus sonhos viajantes de pequenas burguesas lisboetas.

Tudo cheira a esta pobre terceira classe em que parece que não deixámos de viver, país pequeno e ronceiro, onde muitos gostam de se tomar a serio, até os governos, e acabam por mostrar à saciedade o seu lado mais frágil e manhoso.

Lê-se enquanto o diabo esfrega um olho, ou enquanto o diabo reza, o que deve ser mais ou menos a mesma coisa.