sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

A Ronda Noturna


Peter Greenaway (1942) é um dos mais criativos e sofisticados cineastas do nosso tempo. A beleza pictórica das suas criações reflectem a sua formação de artista plástico, embora seus filmes vão muito para além da imagem e são invariavelmente diálogos intelectuais e sensoriais entre a imagem, o texto e a linguagem cinematográfica. Desde The Falls (1980), o seu primeiro longa metragem, onde uma complexa rede de acontecimentos envolvendo 94 vítimas de VUEs (Violent Unknown Events) é-nos contada com um humor muito britânico, e somos confrontados com o inesperado, o burlesco, e uma estética extremamente rica e original. Seguiram-se The Draughtman's Contract (1982), A Zed & Two Noughts (1985), The Belly of an Architect (1987), Drowning by Numbers (1988), que abordam temas como a veracidade da representação pictórica, as patologias, as relações humanas enquanto construções arquitectónicas, a estrutura e a simetria das sucessões numéricas e dos acontecimentos.    

Filmes como The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover (1989), Prospero's Book (1991), o controverso The Baby of Mâcon (1993), e The Pillow Book (1996) consolidaram o estilo e o carácter experimental da borbulhante imaginação de Greenaway. 

Em 2006, Greenaway deu início ao ambicioso projecto Nine Classical Paintings Revisited, onde analisa, primeiramente, a Ronda Noturna de Rembrandt, possivelmente uma das mais grandiosas e desconcertantes pinturas de sempre. Seguiram-lhe a apresentação-performance da Última Ceia de Leonardo no refeitório da Igreja Santa Maria delle Grazie em Milão em 2008, e as Bodas em Caná de Paolo Veronese na Bienal de Veneza em 2009. 

Nightwatching (2007), é um fascinante festim visual e intelectual, no contexto do qual 34 indagações associadas à representação duma milícia popular de Amesterdão do século XVII são formuladas. Greenaway propõe-nos como solução para os 34 mistérios, uma conspiração para assassinar um dos membros do prestigiado regimento. A demonstração fica concluída com o o filme associado, Rembrandt's J'Accuse (2008), no qual a desgraça pessoal e a ruína financeira de Rembrandt são apresentadas como consequências do libelo lançado, por meio da sua monumental pintura, pelo grande pintor holandês. 

Mas, na minha opinião, a questão mais inquietante da brilhante demonstração de Greenaway refere-se à reflexão sobre uma lacuna fundamental do nosso processo de aprendizagem. Greenaway argumenta que somos desde muito cedo ensinados a compreender textos literários de crescente dificuldade, mas muito pouco é-nos transmitido no que diz respeito à leitura das composições artísticas. Naturalmente, esta lacuna nos empobrece consideravelmente, e Greenaway defende que o trabalho artístico deve ser também desenhado para colmatar esta deficiência. A minha concordância com Greenaway relativamente este ponto leva-me a agradecer-lhe pelo contínuo esforço de educar a minha iliteracia visual.      

Mas claro, relativamente a qualquer obra de Peter Greenaway nada é certo, e seria igualmente plausível dizer que Nightwatching não passa duma bem conseguida fabricação visual, construída, acima de tudo, para deleite do seu autor. Neste caso, eu teria que bradar peremptoriamente: J'Acuse Mr. Greenaway de deliberada manipulação e falsificação histórica para fins de entretenimento próprio e da audiência!  

Termino afirmando que não ouso manifestar a minha preferência relativamente a qual das hipóteses é a mais verosímil, pois acredito que estas ambiguidades são inerentes às verdadeiras obras de arte.   
  
Orfeu B.



                                        

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A MAGIA DE UM GRANDE CONTADOR DE HISTÓRIAS


A escrita de vargas Llosa é poderosa. A sua capacidade narrativa é brilhante. Tenho-o como um dos autores imprescindíveis da minha artesania de leitor.

Llosa cria várias linhas narrativas que começam por se ignorar mas que vão insinuando pequenos anúncios do seu possível cruzamento. O leitor vai caminhando em busca desse mesmo cruzamento que poderá, quem sabe, ilumina uma e outra narrativa.

Mais ainda, vários dos personagens deste romance foram já personagens de romances anteriores de Llosa (Lituma, D Rigoberto, Lucrécia…) como se aqui encontrassem o espaço de um balanço de parte significativa da obra do autor. Ou melhor, como se aqui os leitores de Llosa pudessem saber o que aconteceu aos “seus” personagens, aqueles que acompanhou em romances anteriores.

O Peru deste romance podia ser um Portugal dos anos 60. Nestes personagens reconheço tiques e objectivos de vida e formas de viver ronceiras e pequenas parecidas com as que eu observava nesses anos.

Felício Inaqué, pequeno proprietário de uma empresa de camionagem que subiu a pulso na vida, homem sério, cumpridor, decente em todos os sentidos da palavra, vê a vida castigá-lo destruindo a sua pequena ilusão de felicidade com uma amante que o trai com o seu próprio filho.

Llosa trabalha bem a perversidade, gosta de castigar os bons. Veste-os de tristeza, por vezes de tragédia. Demora-se prazentoso nas personagens mais complexas e ambíguas como D. Roberto e Lucrécia.

Estes dois são conservadores na aparência, apreciadores de arte, museus, literatura, estetas do sexo, vendo-se confrontados com a inquietação do filho adolescente que se encontra amiúde com uma estranha personagem, Edilberto Torres, que aparece e desaparece inesperadamente e que D Rigoberto receia que seja o diabo.

Ismael, riquíssimo patrão e amigo de D. Rigoberto, ao ficar viúvo resolve casar com uma bela empregada para castigar os dois filho, verdadeiros gansters de bairro.

A pouco e pouco estas histórias cruzam-se para que as personagens regressem depois ao seu âmbito social e geográfico, como se este país fosse feito de compartimentos estanques apenas unidos pelos lampejos inesperados e breves do destino.

E tudo isto conduzido pala magia de um grande contador de histórias, senhor de uma escrita que nos agarra pelos colarinhos e não nos deixa afastar até ao fim,


domingo, 22 de dezembro de 2013

Leviatã



Nunca na sua vida deixara Progrody. Nesta pequena cidade não havia nenhum rio, nem sequer um lago, rodeavam-na apenas pântanos, e ouvia-se na verdade, debaixo da superfície verde, o gorgolejar da água, sem que, no entanto, esta fosse visível. Nissen Piczenik imaginava que havia uma secreta relação entre as águas escondidas dos pântanos e as poderosas águas dos grandes mares - e que também no fundo dos pântanos poderia haver corais.   

Joseph Roth

Na novela Leviatã, o escritor, jornalista e ensaísta judeu austríaco Joseph Roth (1894-1939), conta-nos a história de um renomado comerciante de corais, Nissen Piczenik, um judeu devoto e profundamente honesto. Escrita em 1934, no exílio francês, e publicada postumamente em 1940, Roth descreve com a linguagem enganosamente simples de uma parábola infantil, a vida e a actividade comercial de Piczenik na pequena cidade de Progrody, situada no limite do império Austro-Húngaro. A convivência quotidiana com os corais, a essência e motivo último de sua existência, conduzem Piczenik à suposição mágica e simplória de que os corais cresciam nas profundezas do mar sob a protecção do poderoso monstro Leviatã. Mas a pacata e sonhadora existência de Piczenik é corrompida pelo aparecimento de um diabólico concorrente, Jenö Lakatos, que introduz naquela região rural o comércio de corais falsos. A prática comercial da falsificação eiva a existência de Piczenik, dado que é induzido pelo concorrente a vender corais falsos, cedendo assim à ganância que mina irreversivelmente as relações de confiança que cultivara ao longo de toda uma vida com os seus clientes e funcionários. Acaba por fim, por vender os seus  bens e abandonar a mulher indo para a cidade porto de  Odessa, arrebatado pela obsessão de encontrar no fundo do mar Leviatã, o protector dos seus corais.        

Mas a narrativa de Roth, para além do seu estilo muito próprio, é evocativa de circunstâncias de desagregação, um vincado traço da sua biografia. Roth testemunhou o desmoronamento irreversível do império Austro-Húngaro e dos seus valores após a primeira grande guerra, viu o desaparecimento das peculiares condições culturais da sua região natal, a Roménia austro-húngara, hoje Polónia e Ucrânia, região onde segundo o poeta judeu Paul Celan (1920-1970) também dali oriundo, viviam pessoas e livros. Sofreu profundamente com a desarticulação mental de sua esposa em 1928, que passou a viver em sanatórios e foi finalmente assassinada pelos nazistas. Por fim, Joseph Roth acabou ele mesmo por sucumbir à melancolia e ao álcool em Paris, onde se refugiou depois da subida de Hitler ao poder em 1933. Na verdade, Roth viveu em seis países com os pertences de duas malas, sempre como um homem cosmopolita, mas cujas raízes foram sistematicamente destruídas pela História. A forte impressão emocional que estes acontecimentos marcantes da História europeia deixaram nos espíritos é retratada com verve e espírito na sua bem conhecida obra, Hotel Savoy, de 1924. Joseph Roth faleceu, tal como Anton Chekhov, que ele tanto admirava, aos 44 anos.

Orfeu B.
   


sábado, 21 de dezembro de 2013

RUI HERBON E A GRANDE LITERATURA OCULTA

A literatura de um povo não é feita apenas pelos grandes nomes que os meios de comunicação ou as academias consagram. Também os que sabem escrever e se distinguem pela originalidade dos temas abordados têm lugar de destaque na literatura desse povo, embora não tenham a projecção de outros autores. Neste caso, está Rui Herbon, autor, entre outras obras, de “O Prazer dos Estranhos”, edição da Colibri. Os contos deste livro, além de estarem muito bem escritos, têm como temas situações e enredos em que a realidade (quase sempre histórica) e a fantasia se conjugam de um modo perfeito. Mas, o que mais me impressionou foi a construção sintáctica do texto, em que avultam a riqueza e o emprego inesperado dos vocábulos, o que dá um ritmo específico à frase. Exemplo do que acabo de dizer, é o conto “A Mulher Mais Bela do Mundo”, que me deslumbrou pelo seu ritmo camiliano, embora sem arcaísmos ou neologismos, mas que, à semelhança das obras de Camilo, impregna a narrativa de um fio de ironia que dá um sentido imprevisto à história. De sobressair será também a cultura literária de Rui Herbon, que lhe permite navegar por diferentes mares e horizontes, como é, entre outros, o caso do conto “O Mercador de Livros”, com um final tão inesperado quão “quixotesco”. Todos nós, os que se dedicam à leitura de obras literárias durante dezenas e dezenas de anos, somos influenciados por autores que nos disseram algo em determinado momento da nossa vida. Ora, no meu caso, nunca poderei esquecer as obras de Papini, autor italiano da primeira metade do século XX, hoje apenas lembrado pelos que se dedicam à literatura italiana. Ora, a escrita de Rui Herbon tem muito de Papini, nomeadamente nos temas abordados. Neste aspecto, não posso deixar de destacar uma obra prima de Papini, intitulada “Gog”. Enfim, esta é a minha leitura de “O Prazer dos Estranhos” de Rui Herbon, autor de quem muito ainda há a esperar.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

ALEXANDRA LUCAS COELHO OU O JORNALISMO COMO GRANDE ESCOLA LITERÁRIA

Sim, o jornalismo pode ser uma das grandes escolas literárias, nomeadamente quando assume a forma de crónica. Ora, é exactamente sob esta forma que a jornalista Alexandra Lucas Coelho apresenta o seu livro “Vai Brasil”, publicado pela editora Tinta da China. O que não é inédito na autora, pois, em 2010, havia publicado, pela mesma editora, uma obra intitulada “Viva México” (que me fez lembrar o filme inacabado do grande cineasta russo Eisenstein “Que viva México!”). Mas voltemos ao “Vai Brasil”, um conjunto de crónicas que a autora foi publicando, o que, em linguagem literária, corresponde a um conjunto de flashes sobre um Brasil multiforme e multicolor, um país que inventa e reinventa uma língua – o português – tornando-a sempre diferente, mas nunca deixando de ser a língua portuguesa. “Vai Brasil” é, pois, um conjunto de fragmentos que se completam ou se entrelaçam, permitindo que o texto adquira uma notável unidade estilística e conceptual. Alexandra Lucas Coelho é uma mulher inteligente, sensível, culta, com um grande poder de observação e um apurado sentido crítico, o que leva um escritor, Miguel Esteves Cardoso, a dizer, no jornal “Público”: A Alexandra apanha o Brasil como nunca li um português apanhar. Consegue apaixonar-se pelo Brasil e amá-lo ao mesmo tempo, conhecendo tanto as magias como os podres. Escreve numa língua que namora as muitas maneiras de falar e de escrever dos brasileiros. Permito-me, ainda, realçar a sua capacidade de impregnação da cultura de um país ou de uma região desse país, sem abdicar do seu espírito crítico, o que, aliás, é extremamente visível neste seu “Vai Brasil”. Embora assumindo a centralidade do Rio de Janeiro, onde vive, não abdica de “mergulhar” em São Paulo, em Curitiba, entre outras cidades e regiões, com um relevo muito especial para a Amazónia, a “nossa” Amazónia e de “A Selva” do nosso Ferreira de Castro, que ela cita por mais do que uma vez. A Amazónia de hoje, a situação do índio e o seu papel na actual discussão sobre a identidade do homem brasileiro. De realçar, também, o entrelaçamento do presente com o passado, o legado de Portugal, em múltiplos aspectos, de que a arquitectura é um dos mais visíveis. Mas sem esquecer o que opõe os dois países, nomeadamente a alegria de viver do brasileiro e o nosso pessimismo ancestral. O que me fez lembrar um pequeno filme, realizado há anos, aquando, creio, das comemorações do achamento do Brasil pela esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral. O filme tinha por tema Belmonte, terra do nascimento de Álvares Cabral, e pretendia comparar o viver no Belmonte português com o da cidade brasileira do mesmo nome. Entrevistadas duas senhoras de alguma idade, viventes no nosso Belmonte, elas queixaram-se amargamente das agruras da vida. Feitas as mesmas perguntas a um cidadão brasileiro da cidade homónima, ele, homem de certa idade, vestindo pobremente, fala da beleza da vida, da felicidade em estar vivo. E, mesmo para terminar, não posso deixar de realçar a beleza poética da frase, a linguagem encantada e encantatória da escrita da Alexandra Lucas Coelho, que faz dela um dos melhores escritores portugueses da actualidade.