sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"O que não pode ser dito/ guarda um silêncio/ feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//(...)" Manuel António Pina


Paris Nunca se acaba
Enrique Vila-Matas
Teorema


Algures no meio da leitura não pude deixar de me lembrar do filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen. Um catalão em Paris acha parecer-se, sonha ser, o seu escritor fétiche Hemingway. O narrador reproduz a experiência do próprio autor, em Paris, igualmente na década de setenta, hospedado num esconso quarto no prédio de Marguerite Duras.          

Citando Pascal “É quase impossível fingir que se ama sem se tornar logo em amante”.

Talvez fingindo ser escritor, escritor se torne. Talvez em Paris esse feitiço seja possível. E assim vamos acompanhando as desventuras de quem querendo escrever o seu primeiro livro, nos vai contando como, sentindo-se parecido com Hemingway, tendo-o como referência desde que aos quinze anos leu um livro dele, está em Paris onde foi pobre mas, ao contrário dele, infeliz.

A sua vida na cidade leva-nos por casas, ruas e cafés, através das memórias que eles guardam dos escritores. O livro exige alguma cumplicidade do leitor no reconhecimento dessas memórias, dos seus actores e da obra que produziram. Não ter esse conhecimento não impede a leitura mas empobrece-a, naturalmente.
Todos esses passantes, escritores de maior ou menos sucesso, são imperfeitos. De algum modo todos esperam que a cidade luz os envolva e eleve na sua arte, na sua mais ou menos angustiada existência.

Entramos nos bares onde ele entra para estar nos lugares onde os escritores entraram, conversaram, foram (in)felizes.
Num ”café simpático quente assado, amável” “Paris é uma Festa” mas nem sempre, nem para todos. Apesar de haver muitas raparigas bonitas a poderem deixar em brasa um jovem putativo escritor, um pouco idiota, a querer num café com leite beber a inspiração de Hemingway, naquele bar do Boulevard Saint Mitchel.

Encontraremos Scott Fritzgerlad, Garcia Lorca ou Zelda, Graan Greene...Rilke,Jules Renard… E tantos outros.

Há episódios breves que ficam na memória. Como a história de Jeanne Hébuterne, amante de Modigliani que se suicida após a morte deste, grávida de nove meses, deixando-se cair de costas de um quinto andar. E um dia ao passar na rua será impossível não olharmos para cima espectando a queda de um corpo desesperado, desamparado pela perda do seu amor.

Passamos pelo café Flore…
Encontramos Mallarmé… Quem sabe um gato.
Entramos no Café Blaisse...

Também o leitor é um pouco “flâneur” nas  ruas de Paris.

Num momento apetece largar o livro e entrar no de Fritzgerald, ao passar pelo conto “O gato à Chuva”.
Em outro acompanhamos a compra de uma mesa carcomida no Marché au Puces, para que o narrador coloque a máquina de escrever, escreva, a sua obra: “A asesina Ilustrada”, que se vai arrastando na busca de ideias e de regras para o processo de escrita. 
O livro de Vila-Matas é ele próprio um arrastamento. Por vezes brilha, por vezes apaga-se. Pede-nos cumplicidade. Mas não é totalmente generoso. O ritmo da escrita resulta, por vezes, um pouco frouxo. Li uma tradução. Não ficou a ganhar. O original aguarda-me algures, numa biblioteca dos nossos vizinhos, para tirar as teimas finais.

Testemunhamos a vertigem do escritor na proximidade com os seus heróis. A admiração é algo que fica quando a realidade desconstrói o herói. 
O jovem pede conselhos a Duras que lhe entrega um papel com recomendações óbvias. Conta-nos o narrador. Será que o fez o autor? Quem sabe? A autobiografia e a ficção confundem-se.
No dia 29 de Abril de 1970 compra papel e um envelope e escreve a mesma carta que Rimbaud escreveu no dia 29 de Abril de 1870 a Téodhore de Banville. A carta é devolvida e acontece "uma noite à espera de Rimbaud". 
Quantos seres fez Rimbaud esperar na noite, na vida? Há uma longa história de cadáveres, de literatura falhada na espera de ser Rimbaud.

Há o cinema. "O Último Tango...", "India Song", "Johnny Guittar"... 
Paris pode dizer, como Vienna e Johnny: “Quantas mulheres amaste?” “Tantas quantas os homens que esqueceste.”

Atravessamos o momento da morte de Franco. Há uma geração que vai partindo que fala dele. Franco é como uma grilheta. A que segue talvez  pergunte um dia Franco quem? Franco porquê? Se houver a pergunta haverá uma resposta, haverá um entendimento da História. Curiosamente no dia em que lia a parte em que o narrador conta como festejou a falsa morte de Franco moribundo, anunciada, por engano, por Santiago Carrilho, tinha morrido Santiago Carrilho. O que é que isto acrescenta ao livro? Nada. Apenas serve de exemplo de como a leitura nos devolve as leituras irónicas do mundo.

Há a deliciosa e algo trágica história de Tomás Moll. O desperdício de uma vida é sempre uma tragédia. Embora muitas vezes a tragédia maior de uma vida seja não ter tido tragédia alguma e passar incólume pela vida e pelo mundo.Tomás Moll é um maiorquino sem família, herdeiro abastado, que se auto exila em Paris, a cidade dos seus sonhos. Sonha escrever um livro que terá como titulo “Como ser o menos possível parecido com Pio Baroja mesmo que nos tenhamos exilado em Paris”.
Já não sabia eu porque guardava “El Arbol de la Ciência” de Baroja lido há muitos anos. Tantas vezes me passou pelas mãos em arrumações sem que a memória me levasse a (re)abri-lo….
Um dia Moll descobre ao ler Baroja, também em Paris esteve exilado, que afinal gosta dele mas o seu propósito de vida continua: tudo podia ser elegante em Paris menos parecer-se com Pio Baroja. E continua irrealisticamente a tentar a sua tarefa.

Não me interessou muito o final. Talvez porque, na realidade, o livro tem vários finais, os de todos os que atravessam o livro, isso nos desinteressa um pouco do destino do narrador.
Os escritores já não se arrastam pelos cafés. Mas em Paris a geografia e os cafés ainda lá estão. E quem escreve continua a cruzar-se com os seus fantasmas em qualquer lugar onde abra os livros.

Fechado o livro regressa-se à realidade como se vindos de uma viagem a Paris. Imagens sensações, coisas que sabemos, que sabíamos, que ficámos a saber melhor mas não o suficiente. Coisas de que duvidamos, que anotamos para saber mais.Lugares onde havemos de ir ou voltar.
Tal como o filme de Woody Allen talvez não uma grande obra mas atravessada por grandes vultos e grandes ideias. Ou que assim parecem, grandes, se vistos à luz de Paris.

“Paris é Uma Festa” e “Paris Nunca se Acaba”.

Em 1961 Hemingway cede à loucura, à incapacidade de escrever e a uma espingarda de dois canos. Para entender tal dor e desespero é preciso um dia ter escrito.

Acaba a vida, um dia… A dos poetas. 

Morreu Manuel António Pina…
Na tarde em que acabava este texto: 19 de Outubro.

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