segunda-feira, 7 de março de 2011

WILLIAM TREVOR, O ESPLENDOR DO CONTO EM LÍNGUA INGLESA



O irlandês William Trevor (1928) é um dos grandes contistas de língua inglesa, na actualidade. Grande por várias razões: pela variedade de temas dos seus contos, a caracterizarem múltiplos aspectos das gentes irlandesas; pela contenção e precisão da linguagem; pela mestria com que domina a arte do conto (atente-se, por exemplo, nos “fechos” admiráveis das suas histórias).
A”Relógio de Água” acaba de editar , em tradução cuidada, um seu livro, intitulado “Depois da Chuva”, no qual se agrupam doze contos. No primeiro destes textos, “O Afinador de Pianos”, aborda-se um tema extremamente interessante: um cego (o afinador de pianos) casa-se, ainda jovem, com Violet, que o ensina a ver o mundo através dos seus olhos. Tendo enviuvado, volta a casar-se, já idoso, com uma antiga apaixonada, Belle, que não só vê o mundo de forma diferente de Violet, como passa a desenvolver um ciúme crescente da sua antecessora, que se expressa através da contradição permanente do modo como Violet tinha descrito as cores e formas de ambientes domésticos e de paisagens ao afinador de pianos. O que origina alguma perturbação no cego que, gradualmente, se vai apercebendo do processo de transformação que está a sofrer, transformação que não pode deixar de aceitar se quiser sobreviver
“Cada casa que continha um piano exibia as suas contradições [note-se, ele ia há anos, de casa em casa, no exercício da sua profissão, primeiro guiado por Violet , agora por Bell]. As pérolas que a velha Mrs. Purtill usava eram opalas, a pele tão branca do dono da papelaria de Kliath era sardenta, os dois renques de carvalhos acima de Oghill eram certamente faias, verdes? Claro que sim – anuia Owen Drowgould [o afinador], já que era essa a reacção mais razoável. Não se poderia censurar Belle por demarcar o seu território e tal demarcação acarretava, inevitavelmente, estragos e destruição. No fim de contas, Belle acabaria por vencer, porque os vivos vencem sempre. E também isso parecia razoável, já[que] Violet triunfara no início e saboreara os melhores anos”
Enfim, uma história comovente que narra o processo algo traumático da substituição de um “software” por outro na mente de uma pessoa cega.
“ Depois da Chuva”, o conto que dá o título à obra, é uma belíssima história de amor, de uma suavidade, de uma melancolia que o aproxima das baladas que cantam os afectos perdidos, a solidão de quem sofreu e os perdeu. Uma história quase sem história, com um fio narrativo tão ténue que quase se não vislumbra. Uma história decorrente do jogo de entrelaçamento de um tempo presente com a memória de um tempo de infância, entrelaçamento suscitado pelo lugar (Pensione Cesarina), onde se desenrola a acção. Em suma, uma história muito bem construída, assente na conjugação do tempo e do espaço em que a “heroína” vive e viveu. Uma história em que o tempo e o lugar se conjugam numa ambiência de fina erotização emocional, feita de saudade e mistério. E termina com a mesma subtileza que a percorre ao longo das suas quinze páginas:

“Ele [o namorado que a havia abandonado] bateu em retirada, tal como os outros fizeram, quando tentou alterar as circunstâncias que constituem o passado impondo-lhes um presente mais alegre e, acima de tudo, a fidelidade futura. Nada lhe sugere a resposta quando reflecte acerca da solidão da sua estadia na Pensione Cesarina, e pressente que nunca virá a conhecer.[...] Vê-se a caminhar no calor da manhã, deixando para trás o cemitério e as bombas de gasolina enferrujadas. Vê-se a procurar a sombra dos castanheiros no parque, a cruzar a “piazza” até à “trattoria” quando cairam as primeiras gotas de chuva. Ouve o ruge-ruge da esfregona da limpeza na igreja de Santa Fabíola, os susurros dos turistas. Os dedos da mulher que reza remexem as contas do rosário, as velas bruxuleiam. A história de Santa Fabíola [refere-se à pintura que havia na igreja] perde-se nas sombras que foram os personagens da sua vida, o sepulcro exala um fedor inodoro a morte. A chuva tornou mais suave o ar agressivo, o anjo surge também misteriosamente”.

“Terreno Perdido” é uma história diferente, uma história escrita de um modo discreto, quase suave, o que acentua ainda mais a terribilidade do seu conteúdo: numa comunidade irlandesa, de prática protestante e intolerâncias e ódios ancestaris, um jovem tem uma visão estranha, quando estava no terreno agrícola do seu pai. Visão essa que o perturba e o conforta e que ele acaba por interpretar como sendo a de uma santa católica, a Santa Rosa. Visão de que ele não pode nem quer abdicar, mesmo que tal acarreter a oposição feroz da comunidade em que se insere e da sua família em particular. Nem as cocções e as perseguições de que, gradualmente, vai sendo vítima, o demove da fidelidade a essa aparição. Ostracizado pela família que acabou por o encerrar no quarto, ocultando-o do mundo, Milton, o jovem que teve a “revelação”, passa a ser considerado louco, tais são as coisas “ sem sentido” que diz. Para acabar por ser morto em sua casa, com um tiro na cabeça. O mistério da sua morte começa a desvendar-se-nos com a chegada para o enterro de uma irmã, que tinha ido viver para Inglaterra, em fuga ao ambiente sufocante da sua família. É durante o enterro que os sinais começam a fazer sentido para Hazel, a irmã regressada, que conclui que o irmão tinha sido “executado” por um outro irmão, com a aprovação da família - “ele tinha sido avisado...” Mas Hazel também sabe que esse segredo terrível nunca sairá das paredes daquela casa e pesará para sempre sobre a sua família:

“ A mãe daria o último suspiro com a terrível angústia do sucedido ainda a queimá-la por dentro; o pai iria recordar aquele acontecimento em todas as marchas de Julho [as festas da aldeia em que todos participavam e onde se começou a revelar “a perturbação” de Milton] que ainda lhe restavam. Os membros da família nunca conversariam acerca daquele dia, mas, através da dor, diriam a si próprios que as coisas eram mesmo assim, não havia alternativa. Milton tinha de morrer: eis o único consolo. O terreno perdido [o terreno onde tinha aparecido a santa] fora recuperado”.

Esta transcrição (assim como as anteriore), corresponde aos períodos finais dos contos a que fizemos referência e atestam, por si sós, as qualidades de contista de William Trevor.

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