segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Lustrum


It's like fighting the Hydra – no sooner do I lop off one head than another two grow back in its place.

Comentário de Cícero sobre seus oponentes políticos.

Na novela Império, Robert Harris descreve a ascensão de Cícero, o grande advogado e estadista romano e possivelmente o maior orador da antiguidade, à posição de Cônsul da República de Roma, cargo equivalente ao de primeiro-ministro excepto que ao longo de um único ano e exercido em meses alternados com um colega eleito. A narrativa é devida a Tiro, escravo de Cícero, mas que na verdade era seu secretário, representante e conselheiro, e que deixou o seu nome gravado na história pela invenção da taquigrafia e pela autoria duma biografia de Cícero, entretanto perdida.

No segundo livro da trilogia, Lustrum, Tiro descreve-nos as dificuldades do consulado de Cícero desde o seu discurso inaugural em 63 A.C., e as implicações da sua governação que o levaram ao exílio em 58 A.C. O título refere-se em latim, ao sacrifício expiatório oferecido a cada cinco anos. Lustrum é um livro vertiginoso, que apresenta ao leitor uma fascinante anatomia dos meandros do poder e da corrupção. Um thriller onde a inteligência e a capacidade de cálculo político de Cícero são testadas até o limite do possível, numa eloquente demonstração da precariedade e volatibilidade do exercício da política em tempos de crise. Em 63 A.C., a Republica está à véspera de aumentar consideravelmente a sua influência e riqueza, mas paradoxalmente, corre o risco real de ser dilacerada e arrastada para a ditadura pelas alianças, traições, crimes e seduções de homens imorais e inescrupulosos. O mais proeminente de todos, César, um homem cruel, maquiavélico e imprevisível, com uma ambição sem limites pelo poder. Para além de César, também: Pompeio, o maior general da república; Crasso, o homem mais rico de Roma; Cátulo, um político íntegro, mas fanático ao ponto da inconsequência, e na prática um aliado dos inimigos de Cícero; Catalina, um sociopata obcecado pela riqueza e pelo exercício da corrupção; e Clodius, um jovem ambicioso, adulador e traiçoeiro. Lustrum retrata de forma épica a luta desigual destes homens contra o íntegro, embora complexo e não completamente imaculado, Cícero, cuja ambição era deixar o seu nome gravado na História da República.

Lustrum é um livro que propicia uma leitura excitante e que, para além das reflexões acerca do seu conteúdo, suscita uma inevitável questão de outra ordem, nomeadamente se um bestseller pode ter um incontestado valor literário. Embora eu não seja de todo um leitor de livros mais vendidos, penso que a qualidade literária não é o maior apanágio desses livros. E julgo que é uma grande pena, pois estou convicto que a humanidade estaria muito melhor se Stendhal, Swift, Dostoevsky, Tolstoi, Kafka, Eça de Queiros, Graciliano Ramos, García Marquez, etc. fossem consistentemente os autores dos livros mais vendidos.

Mas considero justo referir que há também entre os mais vendidos, livros que são estimulantes e muito bem escritos. E que há autores de bestsellers que têm a capacidade de escrever livros de grande qualidade, de criar novos géneros literários, e reflectir sobre a cultura contemporânea de forma crítica e original. Muito particularmente, julgo que Robert Harris é um autor com uma enorme capacidade criativa e literária no género da ficção de natureza histórica. Na verdade, tendo tido a oportunidade de ler todos os seus livros de ficção, Pátria, Enigma, Archangel, Pompeia, Império, Escritor Fantasma (que considero o menos interessante de todos) e agora Lustrum, tenho que dizer que os considero todos muito bem conseguidos literáriamente e que são invariavelmente óptimas leituras. E estou ansioso por ler o livro derradeiro desta trilogia sobre a vida de Cícero que supostamente será publicado em 2011. Mas até lá, felizmente, não faltarão livros excitantes!


Orfeu B.

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