Falava-se da mortalidade dos imortais e citava-se um artigo surgido no “Ipsilon”, suplemento de artes, letras e outras coisas mais de “O Público”, no qual se profetizava que, daqui a 200 anos, ninguém se lembrará do “Memorial do Convento” de Saramago. Eu não concordei, não pelas razões que os meus jovens interlocutores supunham, mas por considerar que 200 anos era uma eternidade. E recordei-lhes um dos casos mais impressionantes que conheço: o caso de Gabriel D’Annunzio, escritor italiano de finais do século XIX, primeiras décadas de XX. D’Annunzio, o escritor-ídolo da geração da minha mãe, que desencadeou paixões e provocou escândalo pela ousadia inconveniente da sua escrita. O D’Annunzio de “O Fogo”, êxito estrondoso em toda a Europa Ocidental. O fogo do lirismo pós-romântico, que incendiou a sensualidade recalcada de uma geração – um fogo há muito extinto. E não foram precisos 200 anos, 20 magros anos após a sua morte (ocorrida em 1938) foram mais do que suficientes.
Se voltarmos às letras portuguesas, alguém será capaz de prever o que ficará do que agora se publica, se lê, se valoriza? Um dos interlocutores do grupo em que me encontrava afirmou: “Que o Pessoa fica, disso não tenho dúvidas!” Na verdade, nem isso me parece tão seguro. Algum Pessoa ficará, sem dúvida, mas outro… Não lhe disse, mas, claro, estava a pensar na “Mensagem”, obra muito marcada pelas circunstâncias em que foi escrita. E recordei, recordei àqueles jovens amigos com quem dialogava, o que corria quando eu comecei a interessar-me pela coisa literária, ainda nos anos quarenta. Três nomes eram considerados incontornáveis na história da nossa poesia: Camões, Bocage e Antero de Quental. Antero, logo seguido por Gerra Junqueiro. Quem, hoje em dia, poderá colocar nesse pedestal o Antero ou o Junqueiro?
Muitos são os factores que fazem catapultar para a ribalta determinados nomes, em detrimento de outros (por vezes, por razões que não são facilmente explicáveis). E menos explicáveis serão, ainda, as que levam ao seu esquecimento. O que é igualmente verdade para os casos de reconhecimento posterior daqueles que não tiveram essa oportunidade em vida. Em parte, foi o que aconteceu com Mário de Sá-Carneiro: considerado, durante muito tempo, como um poeta “excêntrico”, perdido numa busca insana de inovação, Sá-Carneiro acabou por ser colocado em lugar cimeiro, na nossa poesia do século XX. Talvez porque tenha “adivinhado” algo de essencial à nossa modernidade (ou talvez porque a sua ligação com Fernando Pessoa tenha originado uma espécie de efeito carambola).
Outros há que continuam no mais profundo dos esquecimentos em que mergulharam logo após o seu desaparecimento. Entre eles, avulta, no caso da prosa, Joaquim Paço D’Arcos, romancista menor, admitamos, mas contista excepcional, da estirpe de um Sommerset Maugham. Nem a publicação integral dos seus contos e novelas, pelas Publicações Europa-América, parece tê-lo retirado do limbo em que caiu.
Mas ainda há os que (Cesário Verde e Camilo Pessanha, por exemplo), após terem sido redescobertos, voltaram a sumir-se – até quando? Como estivessem sujeitos a uma lei “natural” de ciclos que se vão sucedendo (e repetindo).
Moral da história: todos os imortais são mortais, pelo menos enquanto a asa da ressurreição não os resgatar da noite da não-existência.
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