segunda-feira, 3 de agosto de 2015

NA PELE DO OUTRO


Em 1970, em Amesterdão, subi ao sótão onde Anne Franck esteve escondida dos nazis, antes de acabar por ser apanhada e morrer em Auschwitz. Lembro-me de como ali me senti, apertado0naquele espaço estreito ne sombrio, sentindo na pele, tanto quanto é possível, o drama de um povo que tentava fugir ao holocausto.

Esta história contada por Hans Keilson é a de um homem, judeu, que um casal de jovens holandeses escondem na sua casa durante a ocuipação nazi da Holanda.

O estilo é simples e eficaz. Se não há nada de efectiva comédia na narrativa em que vamos conhecendo os pequenos sobresaltos, os receios, as angústias de quem está escondido e, também, as de quem esconde. Mas são necessariamente diferentes as suas condições e a sua liberdade de movimentos.

A pouco e pouco vamos também ercebendo que terá sido normal muitos holandeses esconderem em suas casas os judeus perseguidos pela Gestapo, pelas SS e sei lá que mais.

O marido sai de manhã e vai trabalhar. Volta a meio da tarde. A mulher recebe o leiteiro, vai às compras, fala com as vizinhas, procura dar uma aparência de absoluta normallidade.

O homem escondido passa horas deitado na cama a ler. Espreita a rua pela frincha das cortinas. Defacilmente a polícia sce de manhã para o pequeno almoço e à noite para o jantar com os seus hospedeiros. Às vezes fala sobre a esperança no fim da guerra e do nazismo. Manifesta por vezes a angústia do tempo que passa e não traz uma promessa de porta de saída.

Tudo corre com a possível tranquilidade, quando o homem escondido adoece. Chamam o médico que ao saber da situção do doente se mostra solidário e vai acompanhar a doença procurando também manter o segredo daquela reclusão.

Ao fim de alguns dias o homem morre. E aqui começam os problemas. Que fazer ao corpo do falecido sem denunciar às autoridades aqueles que tão generosamente o esconderam?

A solução encontrada é relativamente simples. Esperaram pela lua nova, embrulharam o corpo num cobertor e foram colocá-lo debaixo de um banco num jardim próximo.

Tudo corre bem. Quer dizer, tudo corre o melhor possível naquela situação. Até que a mulher se lembra de que o cobertor tem a marca da lavandaria. E, com essa marca, facilmente a polícia dará com eles e os virá necessariamente a prender.

Que fazer? Simples. O jovem casal deixa a sua casa e vai esconder-se na casa de uma familiar. E assim, passam a viver a situação contrária. Aprendem a sentir na pele o drama e a angústia do homem que receberam em sua casa.

Desta forma, a narrativa inverte-se e torna-se naquilo que é uma das funções da literatura: colocar-nos no papel do outro. Fazer-nos sentir a angústia do outro. Habitar o coração do outro, mesmo quando sabemos reconhecer as inevitáveis diferenças.

Quando a literatura cumpre esta sua função está a abrir o grande e belo caminho para a democracia e para a paz.

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