A chuva é carcereira, fechando a gente. Prisioneiros da chuva estavam Constante Bene e seus todos filhos, encerrados na cabana. Nunca tamanha água fora vista: a paisagem pingava há dezassete dias. Mal ensinada a nadar, a água magoava a terra. Sobre as telhas de zinco, se acotovelavam grossas gotas de céu. Na encosta do monte, só as árvores teimavam, sem nunca se interromperem.
…
Mas a bandeira se confirmava, em prodígio de estrela, mostrando que o destino de um sol é nunca ser olhado.
Mia Couto.
Um das características mais fascinantes da escrita de Mia Couto é a de ser inclassificável. É Mia Couto um escritor africano de língua portuguesa? Certamente, mas não exactamente. Escreve no "dialecto moçambicano" da língua portuguesa inevitavelmente mesclado com regionalismos e adaptações locais, evidentemente, mas não exactamente. Penso que a afirmação mais justa seria a de que Mia Couto escreve em mia coutes, pois a diversidade do seu léxico só é compreensível à luz do universo criado pela extraordinária riqueza das suas narrativas. As suas "estórias" são muito mais que narrativas, pois são simultâneamente fundadoras de um vocabulário e dum mundo que são indissociáveis um do outro. E neste universo narrativo, Mia Couto é imperador, pois só ele tem o dom de dizer exactamente como se pode e se deve dizer.
Nesta colectânea de 11 contos, datados de 1990, Mia Couto nunca nos deixa de encantar e de produzir realidades supra-reais, que são invariavelmente de grande densidade humana e duma vincada universalidade
Na verdade, eu diria que a universalidade destes contos, está claramente declarada no título da obra. O paradoxo da unicidade no contexto duma definição, a de raça, que é instintivamente associada a uma colectividade é ao mesmo tempo singela quando dita pelo indivíduo que afirma, "A minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual", mas também extremamente actual e representativa da fragmentação das identidades no mundo pós-moderno. De facto, podíamos dizer que é uma conquista civilizacional permitir que cada indivíduo seja respeitado na sua individualidade, mas por outro lado, esta conquista deu origem à ruptura dos laços que davam a cada indivíduo o contexto social da sua existência.
Mas para perceber a subtiliza destas questões e poder saborear o prazer duma leitura fresca e cheia de surpresas, nada como os contos de Mia Couto, que são, na verdade, o ponto de partida para um novo mundo. Desejo aos leitores uma boa viagem.
Orfeu B.
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