sábado, 3 de agosto de 2013
A MATÉRIA DA VIDA
O leitor normal da obra de Manuel Alegre balança com muitas vezes entre prosa e poesia, com frequente queda para a poesia.
É óbvio também que Manuel Alegre não se coibe em deixar o poeta entrar pela prosa dentro para construir relatos que, tantas vezes, se descolam de um excessivo compromisso com o real para frequentar territórios outros, caminhos em que se misturam tempos, passados e futuros, concretos e fantásticos, reais e ficcionais.
Para a minha geração, a poesia de Manuel Alegre foi um caminho imprescindível, foi a Sierra Maestra da palavra, a festa do sentido, a partilha da música, o encontro da casa foi e será sempre a "Praça da Canção".
A poesia mais recente e a prosa de Manuel Alegre, sem deixarem o fogo da canção, vêm-nos falar da vida e dos tropeços próprios, dos caminhos e descaminhos da vida do poeta. Veja-se esse notável poema que é "Senhora das Tempestades" que é, quanto a mim, um dos grandes momentos da poesia portuguesa dos últimos decénios.
Muita da prosa de Manuel Alegre parte da sua vida e das questões que essa vida levanta, sonhos, utopias, amores, caminhos cruzados e descruzados, vida.
Sentimos essa vida a pulsar por dentro das palavras da narração. E gostamos que assim seja. Porque só pode falar da vida quem a viveu, como é o caso do poeta.
Neste "Tudo é e não é", que li de sopetão, o autor transforma-se num taumaturgo que pega em farrapos de memórias e tenta construir uma narrativa sabendo que as palavras constroem uma outra faceta, uma outra realidade, e que essa realidade foge aos dedos do escritor, para nos falar do que foi e logo para logo o transformar no que não foi.
O leitor vai atrás da Montanha Russa das palavras do narrador que procura narrar o inenarrável e vai enrolando sonhos e obsessões, baralhando tempos narrativos onde se cruzam os que nunca se cruzaram senão nas palavras que, entre o que é e não é, trabalham o sumo da memória.
Talvz esta seja a prosa mais ambiciosa de Manuel Alegre. E talvez também a mais complexa e difícil. Mas o escritor ganha a aposta e consegue dar-nos uma bela razão para acreditar que ler pode tornar-nos em pessoas mais inteiras, mais capazes de se questionarem a si próprias, mais dentro do tempo que lhes é dado viver.
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