terça-feira, 19 de novembro de 2013

DONALD BARTHELME OU O CONTO NORTE-AMERICANO EM FINAIS DO SÉCULO XX

Donald Barthelme (1931-1989) é um escritor desconhecido entre nós. Melhor, desconhecido até agora, até a Antígona ter publicado “40 Histórias”, o que representa um acontecimento na área do contismo moderno. Barthelme é um contista difícil de caracterizar, tal a multiplicidade de temas que aborda e a variedade de estilos que cultiva. Se em certos textos, como “No Museu Tolstoi” e “A Fuga dos Pombos do Palácio”, insere manchas gráficas e desenhos no corpo do texto, condicionando, assim, a interpretação dos leitores; por outro lado, em histórias como “Porcos-espinhos na Universidade”, o autor desenvolve uma fantasia hilariante, que nos incita a participar na “visualização” da descrição das situações que nos são apresentadas, como se pode comprovar pelo extracto que se transcreve. Ao longe, o reitor da universidade e a esposa (a bela Paula) avistam uma enorme vara de porcos-espinhos que se dirigem para a universidade: - Porcos-espinhos na universidade – comentou a mulher do reitor. – Bem, porque não? - Nós não temos instalações para quatro ou cinco mil porcos-espinhos – disse o reitor. – Não consigo fazer uma chamada. - Eles podiam inscrever-se em Estilos de Vida Alternativos – sugeriu Paula. - Já temos demasiada gente inscrita em Estilos de Vida Alternativos – retrucou o reitor, pousando o auscultador do telefone. – Raios partam isto. Eu próprio vou dar cabo deles. Vai ser uma matança. Pura e simples. Mente. - Ainda te magoas. - Disparate, são só porcos-espinhos. É melhor vestir umas roupas velhas. Convirá ainda referir as incursões de Barthelme no campo do experimentalismo literário, como se poderá verificar no conto intitulado “Frase”: Durante cerca de nove páginas não há um único ponto final, nem sequer quando o texto termina… Se, por um lado, o autor pretende captar a corrente da consciência no estado mais puro (onde não há pontos finais…); por outro lado, pretende-se abordar uma questão que se põe a muitos escritores: quando se deve colocar um ponto final numa frase, a fim de que ela ganhe o seu pleno sentido? Estamos, pois, perante um texto magnífico, que honra quem o traduziu para a nossa língua. Outras histórias revelam-nos aspectos diferentes do autor. Veja-se, por exemplo, “Acerca do Guarda-Costas”. O conto inicia-se com a seguinte interrogação: Será que o guarda-costas grita com a mulher que lhe passa a ferro as camisas? A mulher que lhe fez uma queimadura castanha na camisa amarela, uma camisa Yves St. Laurent caríssima? Uma grande queimadura castanha mesmo por cima do coração? Será que o cliente do guarda-costas faz conversa de circunstância com o guarda-costas enquanto esperam que o semáforo mude, dentro do Citroën cinzento-mortiço? Com o segundo guarda-costas, que vai a conduzir? Qual será o tom da conversa? O cliente do guarda-costas fará comentários acerca das jovens de pele morena que se aglomeram ao longo da avenida? Acerca dos jovens? Acerca do trânsito? O guarda-costas alguma vez terá tido uma discussão política séria com o seu cliente? E termina com outra interrogação: As ruas estarão cheias de pessoas a caminhar sobre andas? Pessoas de andas a serpentear três metros acima da multidão com grandes cabeças de ave de papier-mâché, fatos vermelhos e pretos, a agitar faixas de trinta metros de tecido colorido acima das cabeças da turba, simulando a violação de uma jovem personagem feminina que simboliza o país dele? Dentro do Mercedes, o guarda-costas e o seu colega fitam as centenas de pessoas, homens e mulheres, jovens e velhos, que contornam o automóvel, parado no semáforo, como se fosse um penedo no meio do rio. No banco traseiro, o cliente está a falar ao telefone. Ergue os olhos, pousa o auscultador. É impossível contar as pessoas que se comprimem em volta do carro, são demasiadas; não se pode saber quem são, são demasiadas; não se pode prever o que irão fazer, são voláteis. De repente, uma aberta. O carro acelera. Dar-se-á o caso de, numa certa manhã, os caixotes do lixo da cidade, os caixotes do lixo do país inteiro, estarem a transbordar de garrafas de champanhe vazias? Qual dos guarda-costas fracassou na sua missão? Um texto que revela o esqueleto (ou um esboço de carnação) de uma narrativa dramática, narrativa que não chegou a acontecer, acontecendo – como se de um sonho se tratasse. Como se pode concluir, através dos exemplos dados, estamos perante um autor complexo. Mas talvez se possam apontar algumas características comuns ao conjunto dos seus contos: forte sentido de humor (por vezes, a rasar a ironia); sagacidade da observação; projecção das suas emoções, dos seus medos, das suas dúvidas nas personagens dos seus textos (enquanto processo de pesquisa da sua própria vida interior?) Por estas (e outras razões, a descortinar por cada um dos seus leitores), importa ler e reler este grande contista da nossa contemporaneidade.

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