sábado, 18 de junho de 2011

A HORA DOS CONTOS EM ESPANHA

Agora, que estou velho e reformado, agora, um dos prazeres mais intensos dos meus tempos livres é a leitura de livros de contos de autores actuais. E, felizmente, as escolhas não faltam. O contismo, nos últimos tempos, voltou a ser género cultivado em muitos países, nomeadamente em Espanha. Embora pouco traduzidas em Portugal, a aquisição dessas obras está extremamente simplificada através da internet (e utilizando os serviços de uma distribuidora de livros, como a Amazon). Por outro lado, o conhecimento das obras que vão aparecendo está, hoje em dia, muito facilitado pela divulgação que delas faz a imprensa diária espanhola (por exemplo, os suplementos literários de “El País” ou “EL Mundo”). A dificuldade estará, em última instância, na selecção das obras que vão surgindo. Entre essas obras poderei citar: “Pobres mujeres”, de Ignacio Carrión (Edições Rey Lear); “Tanta pasión para nada”, de Julio Llamares (edição Alfaguara) e “ A Hora da Morte dos Pássaros”, de ~
Ignacio Martinez de Pisón (Edições Teorema).



Três antologias de autores conhecidos, a última traduzida em português, razão pela qual a referirei em primeiro lugar. Martinez Pisón, mais conhecido pelos seus romances, dá-nos, nesta obra, um conjunto de oito contos, que correspondem a outros tantos retratos de personagens da sociedade espanhola dos tempos de hoje. A título de exemplo, citarei três desse contos: “Copo de Água no Hotel Colón”, “Fotografia de Família” e “Aeroporto do Funchal”.



O primeiro é um texto divertidíssimo, que tem como tema a personagem do eterno “pendura”, ou seja, de alguém que se infiltra nos banquetes de casamento e, assim, vai sobrevivendo. Descoberto e desmascarado pelo gerente do hotel, é excluído desses banquetes. Mas a sua falta acaba por ser sentida, tal é a gentileza que o caracteriza, o seu porte e maneiras, o calor dos seus discursos, enfim, o brilhantismo que a sua presença confere a tais eventos. O que leva o gerente a convidá-lo a voltar ao “seu” hotel, a fim de animar os festejos nupciais que aí se realizam.

“Fotografia de Família” é outro texto pleno de ironia e mordacidade. Fotografia que irá perpetuar aquele dia em que se comemoram as bodas de ouro do velho casal que ainda não conhecia o marido (melhor, o companheiro) da filha, que não via há catorze anos. Na verdade, tratava-se de uma data festiva, com um significado especial para a família, pois o velho senhor tem os dias contados, embora ainda o não saiba. Por isso, todos desejam que o banquete comemorativo decorra bem e que a fotografia corra ainda melhor, a fim de que esse momento fique devidamente assinalado para todo o sempre. Mas há uma incógnita e um receio: qual será o comportamento de Jorge, o “marido” da filha, um alcoólico com comportamentos imprevisíveis? Todos os cuidados são tomados, mas o imprevisível”previsto”acaba por acontecer, numa catadupa imparável de situações”cinematográficas”, que têm tanto de hilariante como de dramático.

Mas não só de contos em que a paródia é meio (ou fim) é feito este livro. O texto “Aeroporto do Funchal” centra-se numa descrição de sentimentos de um casal em viagem de recreio no Funchal. Amor, ódio, tédio, tudo acontece sem nada ou quase nada acontecer. Enfim, uma descida aos infernos que vivem em nós e, que, de tão subtis, tão íntimos, não podem ser partilhados com os outros.



“Pobres Mujeres” é uma outra obra recentemente editada, que colige treze contos de que é autor Ignacio Carrión, jornalista que se tem distinguido pela publicação de artigos, crónicas, reportagens na imprensa espanhola. Os seus contos, de apurado recorte literário, têm uma nítida influência do jornalismo, o que os torna extremamente interessantes. O que nos faz reflectir, uma vez mais, sobre as relações entre jornalismo e ficção, levando-nos a recordar a obra de Truman Capote”Porgy and Bess”, que, de algum modo , inaugurou um novo género: a entrevista literária.



Atendendo ao que acabo de dizer, creio que não serão de estranhar algumas características desta obra de Inacio de Carrión: precisão de linguagem, objectividade nas descrições de situações; ênfase dada a alguns pormenores, o que permite que as personagens e as suas interacções adquiram um significado específico ( o que denota a influência de técnicas de reportagem). Como este livro não está traduzido em português, permitir-me-ei transcrever algumas passagens do conto “La más hermosa del universo”:

“Prefieres que me salga de tu habitación?, proseguió la madre, me estás despidiendo? Sólo quiero añadir una cosa: como madre esto todavia es peor que tener que afrontar la muerte de un hijo. Sí, peor que si tu murieras, porque no puedo siquiera decirme que te has muerto, no puedo llorar tu muerte...

La madre retrocedió un paso para salir de la habitación y desde alí observó a su hija tumbada en bragas y sujetador, frente al espejo del armário, vio los cabellos desordenados de su hija en el desordre indiscriptible del dormitorio, y se fijó en las manos escuálidas de su hija extendidas sobre el colchón. Reprimió el llanto. Se dijo: ahora no voy a llorar, no quiero darle ese gusto.”
(...)No se permitió ni un solo espasmo más. Se tragó las lágrimas. Endureció la expression de su rostro. Era una madre airada y desenganada. Se secó las lágrimas con una punta del delantal que llevaba puesto , y dijo: Ya está bien.
La hija imitó la voz de la madre. Ya está bien!, repetió, ya está bien, lo haces demasiado difícil, no hagas drama de todo esto, mi cuerpo es mío y mi vida es mía, asi que podrías dejarme en paz. Al oír estas palabras, la madre volvió a gemir y desapareció por el pasillo luego de cerrar la puerta del dormitorio para que muriera en paz la hija, para que se suicidara gradualmente, a su modo, si asi lo deseaba, solo e por supuesto en paz. “(...)
Os exemplos que escolhi revelam ainda outras características da obra do autor, que importa relevar: crueza nas descrições das situações, por vezes a resvalar para a crueldade; uma acentuada dificuldade de comunicação entre personagens, expressão da sua solidão interior.
Estamos, pois, perante uma obra diferente do que se vem publicando no campo do contismo, pelo menos entre nós; uma obra vertida numa linguagem que tem tanto de ágil como de incisiva.



“Tanta pasión para nada”, de Julio Llamazares (Alfaguara), é um conjunto de treze contos, extraídos de três obras suas, publicadas entre 1991 e 2008. Um conjunto excepcional, tanto na forma como no conteúdo. A vida vivida como uma paixão inútil que cumprimos com a mesma determinação, o mesmo entusiasmo que colocamos em tudo aquilo que nos faz sentido. E é exactamente essa falta de sentido que dá sentido às suas histórias, em que são personagens figuras do nosso quotidiano ou de quotidianos que nos são afins. Histórias decorrentes do real, mas eivadas de uma aura poética que as transfigura em algo de irreal, que as aproxima do sonho.



Difícil será citar um ou dois contos que ilustrem aquilo que acabei de dizer, tantas e tão variadas são as situações, os ambientes em que se desenrolam as histórias. Atrever-me-ei, no entanto, a preferir “Los viajes del tio Mario” e “El médico de la noche” No primeiro destes contos, relata-se a paixão de dois jovens que a vida separa e que o acaso volta a juntar no fim da vida, quando ao velho tio Mário (o jovem enamorado de outrora) pouco mais tempo lhe resta de vida.
“El médico de la noche”descreve um episódio da guerra civil espanhola, em que são protagonistas guerrilheiros em fuga às tropas franquistas e uma família de pobres camponeses que vivem isolados nas montanhas. Numa noite gelada, esse grupo de guerrilheiros bate à porta do casebre, à procura de um pouco de calor. O casal acabava de ter uma filha que se encontra doente. Um dos homens aproxima-se da criança, observa-a e tira da sua maleta alguns medicamentos que lhe administra. Esse guerrilheiro voltará em noites seguidas para observar e medicar a criança que acaba por melhorar. Destas visitas nocturnas nunca os pais deram conhecimento a alguém, nem à própria menina que, sobrevivendo, se fez mulher, tal o medo que a “guardia civil” infunde em todos os que, de um modo ou outro, alguma vez tiveram contacto com a guerrilha. É um segredo que a mãe da menina, agora uma nonagenária, guarda e espera levar consigo para a cova. Até que um dia se faz na aldeia uma exposição histórica de alguns objectos apreendidos à guerrilha.

“La madre gurdió también silencio. Parecia más tranquila tras habernos revelado su secreto, pero seguía muy emocionada. Lo estaba desde que reconoció, nos dijo,entre los objetos de los guerrilleros que se exponían en el Ayuntamiento, aquel maletín de cuero que el médico que salvó a su hija de morir portaba cada noche en sus visitas y del que sacaba la medicina que le inyectaba, y al saber, sobre todo, que su dueno había muerto en la emboscada que hizo famoso Cerro Moreno y de la que aún tenia el recuerdo, como todos los vecinos mayores de Santa Cruz, aparte de los disparos, que duraran toda la noche, de los cadáveres de los maquis pasando frente a su casa al amanecer cruzados sobre caballerías
(alguno con los sesos o las tripas colgándoles como trofeos) entre filas de guardias civiles, sin saber que uno deles era aquel médico misterioso que salvó su hija de morir sin pedir nada ello, salvo calentar-se al fuego.
- Que Dios se lo haya pagado! – concluyó la mujer su confesión cerrando los ojos.”
Preferi transcrever o texto espanhol com receio de que a minha tradução lhe fizesse perder qualidade, visto não ser especialista em tradução. Pelo que foi dito, creio que se tornou claro que se impõe a publicação destas obras por uma editora portuguesa. Não podemos continuar a desconhecer o que se publica tão perto de nós – tão perto e tão inacessível ao grande público.

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