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A arte é realista como actividade e simbolista como o facto. É realista neste sentido, que não é ela que inventa por si mesma a metáfora, mas tendo-a assinalado na natureza, a reproduz fielmente. O sentido figurado também não significa nada, tomado isoladamente, mas refere-se ao espírito geral da arte em toda a sua integridade. Da mesma maneira, tomadas isoladamente, partes da realidade não significam absolutamente nada.
A arte é simbólica pelo desenho de toda a sua aspiração. O seu único símbolo esta na vivacidade e no carácter facultativo de suas imagens, que lhe são próprias em toda a sua integridade. O facto de as imagens serem intermutáveis é o sinal de um estado de coisas particular em que as partes da realidade permanecem indiferentes umas às outras. A intermutabilidade das imagens, isto é, a arte, é o símbolo da força.
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Mas apenas a linguagem móvel das imagens é capaz de exprimir a força, o facto da força, da força que dura apenas o tempo em que se reproduz o fenómeno. Para ela não há outro meio de expressão. A palavra directa do sentimento é alegórica, e não há nada que possa substituí-la.
Boris Pasternak
O nome de Boris Pasternak (1890-1960) está inevitavelmente associado à sua obra mais conhecida, Doutor Jivago, também um clássico cinematográfico. Por esta obra foi-lhe atribuído o Prémio Nobel de Literatura de 1958, entretanto recusado a contragosto devido à pressão do regime soviético. Sabe-se hoje que essa atribuição foi controversa e que aconteceu sob grande pressão, muito particularmente, de instituições e agências governamentais norte-americanas, sempre prontas a instrumentalizar as vozes dissonantes ao regime soviético.
Nesse contexto, é natural que se levantem dúvidas relativamente à obra desse complexo autor. Salvo-Conduto é um livro particularmente relevante para esse fim, pois revela a pureza de propósitos dum jovem artista e o seu estilo sóbrio, embora marcante e característico. Salvo-Conduto é um relato lúcido, ainda que emotivo, dum percurso intelectual, desde a infância, multi-linguística no seio duma família judia convertida de artistas (o pai era um conhecido pintor e professor de pintura e escultura, a mãe pianista), até a maturidade enquanto autor nas primeiras décadas que sucederam a revolução bolchevique.
A família Pasternak era muito bem relacionada com o meio artístico moscovita no início do século XX, e entre os visitantes regulares encontravam-se, Sergei Rachmaninoff, Alexander Scriabin e Rainer Maria Rilke. A primeira aspiração de Boris foi a de ser compositor, porém depois de apresentar algumas peças de sua composição a Scriabin, este aconselhou-o a continuar seus estudos de música, mas não sem procurar obter uma formação universitária complementar. O jovem Boris decidiu-se então pela filosofia e esta inclinação levou-o e estudar de 1910 a 1914 com Hermann Cohen e Nicolai Hartmann, conhecidos neo-kantianos da escola de Marburgo. De volta à Rússia, decide-se definitivamente pela carreira literária, mais ligada à poesia, e por meio desta associa-se aos autores e artistas mais influentes do período pós-revolucionário: Anna Akhmatova, Osip Mandelstam, Sergei Eisenstein, Vladimir Maiakovsky, entre outros.
A seu julgamento negativo da Revolução de Outubro, apesar da admiração que nutria por Lenin, revelou-se muito mais tarde através do seu mais conhecido romance, Doutor Jivago, escrito em 1956, contrabandeado para o estrangeiro e publicado primeiramente em Milão em 1957. Mas entretanto há um sem número de situações críticas que são descritas no livro, como, por exemplo, a prisão de Osip Mandelstam numa noite de Maio de 1934, pela autoria do Epigrama de Stalin: " … Seus dedos gordos são escorregadios como lesmas,/E suas palavras são absolutos, como medidas de merceeiro./Suas antenas de barata estão rindo,/E sua bota nova brilha./E ao redor dele a turba de chefes de pescoço curto,/Ele brinca com os serviços de meio-homem./Quem gorjeia, mia ou geme,/Ele sozinho empurra e pica./Ele esmaga-os como ferraduras, com decreto após decreto/Na virilha, na testa, no rosto, ou no olho./Quando há uma execução, há tratamento especial,/E o peito ossétio se infla." Mandelstam acabou por falecer em 1938 num campo de prisioneiros na Sibéria, e Pasternak foi instado, pelo próprio Stalin, sobre o julgamento que fazia do seu colega através dum inesperado e surpreendente telefonema.
Particularmente pungente é a descrição do definhamento intelectual e da desilusão irreversível com o partido e o sistema, que levou ao suicídio, em 1930, o autor que Pasternak considerava ser o mais original do seu tempo, Vladimir Maikovsky.
Salvo-Conduto é um livro duma grande honestidade intelectual e digno dum dos mais representativos escritores russos da primeira metade do século XX.
Orfeu B.
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