quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

CREIO PORQUE É ABSURDO

Credo quia absurdum (ou seja, “Creio porque é absurdo”) é assim que se inicia o novo romance de Luís Joyce-Moniz, intitulado “Dualistas: O Hipnotista Abade Faria e o Enigma da Descorporização em Vida” (Edições Colibri, 2013). Luís Joyce-Moniz é um autor diferente na moderna literatura portuguesa. Psicólogo de formação e profissão, é professor catedrático aposentado da Universidade de Lisboa, onde exerceu uma forte influência na formação (teórica e prática) de estudantes de cursos de Psicologia. Joyce-Moniz foi o grande introdutor em Portugal de modelos e metodologias que tinham como suporte a Psicoterapia Cognitiva. O que não foi tarefa fácil, numa época em que predominavam as correntes que se filiavam em princípios e práticas da Psicologia Analítica. Durante anos, Joyce-Moniz publicou uma série de obras de carácter científico e formativo, aliás, com êxito assinalável. Embora tivesse entrado, em jovem, no campo literário, como autor teatral, foi só em 1998 que iniciou a sua carreira como romancista. Primeiro com a publicação de “In & Out”, logo seguida, em 2000, do “Corpo Conversivo”, ambas as obras editadas pela Relógio d’Água. Em 2002, publica, pela Quarteto, “A Psicologia não Existe”. Dotado de uma inteligência brilhante, de uma intensa curiosidade pelo que ao Homem é essencial, possuidor de uma cultura profunda em vários domínios do saber, Joyce-Moniz expressa muitas dessas qualidades nos seus romances, sem esquecer a sua formação de base em Psicologia. Ora, o livro que agora se publica será talvez aquele em que o autor leva mais longe as suas qualidades de romancista. Não só pelo tema (a dualidade corpo-espírito), como pela trama em que se desenrola a acção e se apresenta o pensamento das personagens que intervêm ao longo do processo narrativo. Subjacente ao que acabei de dizer, está uma estrutura dramática eivada de mistério e conflitualidade, que o aproxima do romance policial, em que a acção se situa no plano psicológico. Ou seja, a partir de certo momento, o texto adquire o ritmo de um policial cinematográfico, tal a força da visualização da descrição e a dinâmica de que se vai impregnando. A história, propriamente dita, desenvolve-se ao longo de 18 capítulos e “está redigida no presente do indicativo e a narrativa reflecte o pensamento e as acções do protagonista, Claude Navarro (embora este não seja o narrador)”, no dizer do autor. O “auteur savant”, na expressão de críticos literários franceses, permite ao autor, portanto aquele que “sabe”, uma maior liberdade na introdução de conceitos (hipnose, sugestão, meditação, concentração, indução, sono lúcido, e outros) e na textura do drama psicológico. Conceitos e práticas que o autor domina cientificamente (veja-se o seu livro “Hipnose, Meditação, Relaxamento, Dramatização”, publicado em 2010, pela Porto Editora), cujas aplicações práticas nos descreve neste seu romance, em que acção se passa na Índia do Sul, local onde viveu e de que tem um conhecimento profundo. Permitam-me, ainda mais, algumas notas. Uma, sobre o modo como o dualismo espírito-corpo é compreendido nas três religiões da India: hinduísmo, jainnismo e budismo; outra nota, sobre o Abade Faria, português de finais do século XVIII, inícios de XIX, nascido em Goa e vivente em Paris, que ficou célebre pelas suas teorias e práticas sobre estados de alteração da consciência, de que o sono lúcido será a mais relevante. A última nota que quero deixar é algo que não é uma qualidade menor deste romance, antes pelo contrário: a finíssima linha erótica que o percorre e que tem o seu epílogo na parte final da obra. Fruto de uma saída do corpo mal sucedida, o espírito de Claude Navarro fica a pairar, em dificuldade de voltar ao corpo, o que poderá originar a sua morte física. Mas, finalmente, a situação resolve-se: “Jananee, em carne e osso, e com aqueles cabelos longos negros magníficos sobre as costas, está estendida em cima do seu corpo. ‘Claude, por favor, não morra agora…’ Não morre. Não morre, porque autoscopia, adieu. Como pode não acabar de pairar, se a vê e revê colada a ele, num boca a boca que imagina frenético? ‘Claude, não se atreva a morrer nos meus braços.’ Está quase a senti-la em cima dele. Da última vez que se entesou, foi no almoço de Vandiyur Mariamman Teppakulam, e os seus joelhos só se tocavam de quanto em vez. ‘Claude, regresse à vida!...’ Coragem. Que ela aguente, pois ele vai já na descensão. Antevendo-se a reincorporar tantas vezes quanto puder. ‘Claude…’ Cortando a brisa nocturna, desce vertiginosamente na direcção dos corpos. Se ela puder reter-se, ele desiste do dualismo para sempre.” Em suma, estamos perante uma obra com um argumento superiormente concebido e, acentue-se, muito, muito bem escrita.

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