sábado, 28 de fevereiro de 2015

O centauro no jardim



(Me imaginava vagueando, não no deserto, como os judeus, mas numa planície coberta de neve, na qual meus cascos afundavam; as patas enregeladas quase não me obedecendo, mas de cabeça erguida, eu prosseguia - arriscando tudo. E conseguia: de súbito, toda a parte posterior do corpo se destacava e ficava, pelas patas, encravada na neve, enquanto a metade anterior, agora aliviada da carga avançava, sumia no horizonte.)

Moacyr Scliar



Desde A Metamorfose de Kafka (texto escrito em 1912 e publicado em 1915), a transformação (do alemão Die Verwandlung, ou metamorfose segundo a versão francesa que mais nos influenciou) é um artifício fundamental da literatura moderna. Em O Seio (1972), Philip Roth inicia a trilogia envolvendo o professor de literatura David Kepech, com a desconcertante transformação deste especialista em literatura do século XX em um gigante seio feminino. Tal como na metamorfose de Gregor Samsa, o enigma acerca da génese da transformação de Kepech é mantido e esta parece ser irreversível.  

Em “O centauro no jardim” (1980), o escritor gáucho, médico, judeu, Moacyr Scliar (1937-2011), apresenta-nos uma nuance particularmente fascinante do processo de transformação, associando a componente mítica da figura do centauro ao realismo psico-neurológico de uma patologia no contexto das bruscas alterações da sociedade brasileira dos anos 1960 e 1970.  

Neste livro de grande engenhosidade e humanidade, o autor da A guerra no Bom Fim (1972), Os leopardos de Kafka (2000), entre muitos outros, expõe-nos, em primeira pessoa, a biografia de um homem de 38 anos, filho de um casal de judeus de origem russa, transplantado no interior do Rio Grande do Sul por um programa para salvar famílias judias vítimas dos pogroms. Neste ambiente radicalmente distinto ao das suas origens, nascem os filhos do casal Tratskovsky, o quarto assaz extraordinário, Guedali, centauro: metade homem, metade cavalo. Guedali, cresce, por força da sua bizarra natureza, solitário, excluído, propenso à leitura e aos estudos. Mas à extraordinária descrição da existência de Guedali, segue a reflexão do homem a caminho da maturidade e o inevitável vislumbre de que a sua singularidade individual só faz sentido no contexto da sua família e da sua história pessoal, no contraste da sua condição de judeu, ainda que centauro, com a sociedade que o circunda, e o inevitável processo de assimilação. Ao homem maduro impõe-se a explicação racional de que a sua condição de centauro, era na verdade, uma situação patológica causada por um tumor no cérebro. E finalmente, a conclusão de que ansiedade centáurea ou de cavalo alado, não lhe foi extirpada pelo escalpelo do cirurgião que lhe restituiu a condição de homem, pois continuava sempre viva a sua voracidade pelas cavalgadas por campos abertos e pelo seu irresistível poder libertário. 

Orfeu B.


                                                      

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