sábado, 9 de julho de 2016

Shakespeare, Albert Camus, Sándor Márai, Orfeu e a Ilha de Lesbos

Apresentação da Revista número 11 do Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto “O estranho e o estrangeiro no Teatro”
7 de julho de 2016, Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Shakespeare, Albert Camus, Sándor Márai, Orfeu e a Ilha de Lesbos
No dia 20 de junho a Professora Cristina Marinho esteve no Departamento de Física e Astronomia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e deixou-me: um volume intitulado “O estranho e o estrangeiro no Teatro”; uma belíssima rosa encarnada com subtis traços cor de rosa; e o pedido para apresentar o volume 11º da revista de Teatro do Mundo, publicado pelo Centro de Estudos Teatrais da Universidade do Porto (CETUP).
Ao folhear o volume, tornou-se mais que evidente que não havia qualquer hipótese de satisfazer minimamente o que me era pedido. Eu simplesmente não tenho os conhecimentos, a cultura e a perspicácia para fazer uma apresentação que seja minimamente credível e competente de uma revista tão rica e tão complexa. Inevitavelmente, recordei-me de um texto de Borges, no qual o participante de um concurso de poesia que tinha como tema a rosa, decidiu, por conta das convicções estilísticas, enviar ao júri o mais genuíno poema naturalista: um botão de rosa. Mas, para a apresentação da revista, já não era possível. A rosa já tinha aparecido no início da história.
Todos sabem que Shakespeare é a quinta essência do teatro e, assumindo que esta apresentação termina bem, ou noutra língua, a de Shakespeare, “All’s well that ends well”, o que me cabe é conduzir esta apresentação de modo a ser consentânea com o epílogo desta bem conhecida peça:
King: The King’s a beggar now the play is done. All is well ended, if this suit be won: That you express content: which we will pay: With strife to please you, day exceeding day: Ours be your patience then, and yours our parts; Your gentle hands lend us, and take our hearts.
E também com as linhas iniciais e finais do soneto número XXIII do bardo inglês:
As an unperfect actor on the stage.
Who with his fear is put besides his part.
... 
O! learn to read what silent love hath writ: 
To hear with eyes belongs to love's fine wit. 
Albert Camus é possivelmente o mais eminente escritor e pensador que encarnou a figura de um Sísifo da existência; Albert Camus é também o criador do personagem aparentemente  simplório que era estrangeiro da própria vida. Estrangeiro, estranho, alienígena, errante, refugiado. Albert Camus deu à existência a densidade do chão que todos nós pisamos e partiu prematuramente, deixando-nos encurralados no segundo acto de uma peça de Beckett que não tem seguimento, ainda que todos saibamos que a solução deveria nos ser revelada no terceiro acto.
Sándor Márai: Na sua obra prima “A mulher certa” o escritor húngaro apresenta-nos a história de uma relação marital desfeita do ponto de vista dos três personagens envolvidos (algo como a “Caixa Negra” de Amos Oz). Três pontos de vista pós-modernamente correctos, mas que constroem uma encenação teatral disjunta e contraditória, na qual os personagens se dirigem a si próprios, estranhos uns para os outros, estrangeiros na sua terra natal e noutras, estando ao mesmo tempo profundamente entranhados na trama da vida desfeita e refeita pela continua transformação do mundo e das vontades.
Orfeu: Orfeu é aqui o personagem à procura de um autor; é o estrangeiro, objectivo e subjectivo, desta apresentação. Nome mítico que imperfeitamente habita a condição de ser actor de si mesmo. Percebe alguma coisa de física e de manipulações matemáticas, mas tem grande dificuldade em formalizar e exprimir o essencial no que se refere ao lançamento do 11º número da revista de Teatro do CETUP.
A Ilha de Lesbos: quem viu a “Vida de Adéle”, ou como sugere o texto da Professora Cristina Marinho nesta revista e onde é sugerido o título alternativo “Le Bleu est une Couleur Chaude”, entende que mesmo as coisas mais genuínas como o amor entre duas mulheres pode dar origem a tempestades de areia nas mentes mais porosas. Orfeu, o estrangeiro, não sabe se há um amor lésbico, um amor gay, um amor hétero, pois só acredita na existência do amor ou do desamor, embora perceba que, em oposição, o ódio pode ter infinitas nuances.
Mas esta apresentação já vai longa e não dá um sinal inequívoco de que vai terminar bem.
Sim, Orfeu, o estrangeiro, pede desculpas pela generalidade dos comentários. Ele percebe a estratégia das apresentações, mas costuma perder-se nas tácticas das subtilezas retóricas. Enfim, não são só as palavras que exprimem o estranho e o estrangeiro no teatro, há muito mais no teatro naturalista da vida. E, neste, somos todos estrangeiros uns para os outros; desempenhamos com convicção o nosso papel, mas falhamos miseravelmente na representação do que os outros actores-encenadores esperam de nós. Transformamos a comédia em tragédia, a tragédia em comédia e, contrariamente ao que preconizava Shakespeare, almejamos ser reis, embora não passemos, quase que invariavelmente, de mendigos.

Orfeu B. 

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