que nunca por nunca estas linhas tivessem um ar acabado,
quisera apenas que uma urgência das coisas
as reclamasse, uma veemência,
uma potência as coisas,
e aí acabasse a sua breve música
mas já que a mim devastava
que a ti te devastasse
leitor sempre inimigo
como o cria assim a sua própria sombra
Herberto Helder
Decorrido um ano do desaparecimento do poeta em Março de 2015, foi publicada em Março de 2016 a primeira recolha póstuma de poemas inéditos de Herberto Helder. Selecionados pela viúva, Olga Lima, de entre um espólio que certamente nos reserva assombros e sobressaltos, esta edição única alerta os admiradores do poeta de que está em preparação uma edição crítica da obra inédita do autor de A Morte sem Mestre, Os passos em volta, A faca não corta o fogo, e de outras obras marcantes.
Certo é que com os poemas de Herberto Helder todos os leitores são, até os mais assíduos, sempre arrebatados pela surpresa e não menos pelo deleite. Para Herberto Helder os poemas eram contínuos como o espaço-tempo e nos eram apresentados a fumegar. Herberto Helder era, para além de um encantador de palavras, o fogo que as envolvia antes delas sairem da forja da sua oficina.
Só nos ocorre pensar em termos de culminâncias. O dom da palavra como píncaro da evolução, Herberto Helder como cume da língua Portuguesa, cada poema como vértice em altitude de uma cordilheira de poemas abertos, evocativos de imagens inesgotáveis.
Não é verdade que depois da morte do poeta há o vazio de um pesado silêncio. A poesia nunca cessa de sibilar sentidos. Fiquem atentos os ouvidos. Todos os poemas são inéditos.
Orfeu B.
a morte é mesmo estranha:
morre-se todos os dias
e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,
e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,
e não há ranhura onde a moeda entre, nem a ranhura de uma velha caixa de música, e no entanto estremeço
e falta-me o ar, sim sim
arrebatavam-me as músicas de J.S. Bach
no silêncio das naves através da catedral inteira,
vozes e vozes dos rapazes castrados
e de repente um baixo monstruoso,
e isto se Deus existisse mesmo, punhal fundo no músculo coração,
e depois quente chôro pela cara abaixo
- oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara
Herberto Helder
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