segunda-feira, 18 de abril de 2011
A DELICIOSA FRAUDE
Romain Gary, escritor francês nascido lituano, comete duas deliciosas fraudes com este romance.
A primeira é que assinou-o com o pseudónimo de Émile Ajar e, como não foi identificado, ganhou pela segunda vez o prémio Goncourt que só pode ser atiribuído uma única vez a cada escritor.
A segunda fraude, entre aspas se se quiser, é a de criar um pequeno narrador marroquino, Mohamed, que não tem a idade que julga que tem e vive em casa de uma senhora judia, ex-prostituta sobrevivente de Auschwitz que ganha dinheiro recebendo e cuidando de filhos de prostitutas.
As reflexões e aforismos de Mohamed são deliciosas porque o seu olhar sobre o mundo e as pessoas está isento dos lugares comuns e de uma certa moralidade com que normalmente se constrói o crescimento e a socialização de uma criança.
"No início não tinha uma mãe nem sabia que era preciso ter uma."
"Aquele sacana não era deste mundo. Já tinha 4 anos e ainda era feliz."
"- São os pediatras que se ocupam das crianças.
- Só quando são bebés. Depois são os psiquiatras."
"...o sono dos justoS... Acho que são os injustos que dormem melhor, porque se estão a borrifar, enquanto os justos não pregam olho e preocupam-se com tudo. Se não não seriam justos."
"Eu sabia que tinha toda uma vida á minha frente, mas não me ia pôr doente por causa disso."
"Eu acho que os judeus são pessoas como toda a gente mas não devemos ficar ressentidos com isso."
"... o que era importante era tocar muito tãtã para afastar a morte que já devia estar por aí e que tinha pavor aos tãtãs por razões pessoais."
Mohamed é uma espécie de menino da selva, se bem que a selva seja um bairro pobre de Paris onde abundam os africanos, os judeus e os árabes. E, no seu deambular pela vida e pelo bairro, talvez sem o saber, procura uma mãe para poder tratar dela. E no seu sonho chega a desejar uma mãe prostituta para que ele seja seu chulo e, assim, possa protegê-la...!
A história cresce como uma comédia negra que se vai adensando e nos leva a pensar no que é o amor, a doença, a morte, e onde a solidariedade, sem palavras grandiloquentes a embrulhá-la, é apenas a forma única de sobrevivência entre vizinhos de um prédio, de um bairro ou do mundo.
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