quinta-feira, 21 de abril de 2011

MILAN KUNDERA, FIGURA MAIOR DA CULTURA EUROPEIA



De Milan Kundera, publicou a D. Quixote um conjunto de textos de cariz ensaístico, compilados numa obra que tem como título “ Um Encontro”. É uma obra em que a inteligência, o humanismo e a cultura do autor estão sobejamente demonstrados. Uma obra que se lê com prazer e se relê ainda com maior prazer. Por isso, estas linhas, a assinalar o seu aparecimento, em Portugal.
Um tanto ao acaso, destacarei o capítulo dedicado aos autores que, ao longo dos tempos, vão passando para a “lista negra” dos autores designados de “malditos” ( os esquecidos ou os que deixaram de estar na moda). Entre eles, Anatole France, considerado hoje como um autor menor, que nada diz às gerações actuais.O que sempre surpreendeu Kundera, pois guarda uma lembrança extremamente positiva de alguns textos seus, como “Les dieux ont soif” (há uma edição portuguesa, esgotada, creio). É exactamente essa obra que Kundera valoriza, no capítulo “As Listas Negras ou Homenagem a Anatole France”. O ensaísta checo tenta explicar essa descida aos infernos deste “autor maldito”:
“ O cortejo fúnebre que acompanhava Anatole France tinha vários quilómetros de comprimento. Depois tudo se alterou. Exaltados pela sua morte, quatro jovens poetas surrealistas escreveram um panfleto contra ele. (...)”De facto , mal o caixão tocou o fundo da cova, começou para ele a marcha para a lista negra”

De onde vêm as maldições como a que caiu sobre Anatole France?
“Dos salões. Em nenhuma parte do mundo desempenharam um papel tão importante como em França. Graças à tradição aristocrática que dura há séculos, depois graças a Paris, onde, num espaço exíguo, se amontoa e fabrica opiniões de toda a elite intelectual do país; não os propaga através de estudos críticos, de debates eruditos, mas de fórmulas surpreendentes, de jogos de palavras, de tolices estrondosas(...)
Anatole France, no seu romance “Os Deuses Têm Sede, faz-nos uma análise das forças políticas e sociais que se desenvolveram durante a Revolução Francesa, análise que nos diz mais do que a História nos tem apresentado. Mas o livro de Kundera não se limita à análise literária. Outros temas são abordados, sempre com o inconformismo e a argúcia que o caracterizam. Assim, por exemplo, estabelece uma diferença radical entre “As Duas Grandes Primaveras”, ou seja, entre a “primavera francesa”, a do Maio de 1968, e a “primavera checa”, ocorrida no mesmo ano, acontecimentos que os franceses dessa época consideraram idênticos. Kundera esclarece:
“O Maio de 68 foi uma explosão inesperada. A Primavera de Praga foi o culminar de um longo processo enraizado no choque do Terror estalinista dos primeiros anos que se seguiram a 1948.
O Maio de Paris , resultando em primeiro lugar da iniciativa dos jovens, estava impregnado do lirismo revolucionário. A Primavera de Praga inspirava-se no cepticismo pós- revolucionário dos adultos.
O Maio de Paris era uma contestação jovial da cultura europeia, considerada enfadonha, oficial, esclerosada. A Primavera de Praga era a exaltação desta mesma cultura durante muito tempo abafada pela ideotia ideológica, a defesa tanto do cristianismo como da descrença libertina e, obviamente, da arte moderna (digo bem: moderna, não pós-moderna).
O Maio de Paris exibia o seu internacionalismo. A Primavera de Praga pretendia voltar a conferir a uma pequena nação a sua originalidae e a sua independência”
Esta reflexão de Kundera é extremamente actual e corresponde a uma tendência que os diferentes povos têm de explicar o que acontece com outros, à luz do que ocorreu com eles. Situação semelhante tem acontecido entre nós, nos últimos tempos ao compararem-se os movimentos insurreccionais de massa, em curso nos países árabes do Norte de África, com o nosso 25 de Abril de 1974. Esta centração no que acontece entre nós para explicar o que se passa com os outros, é de um primarismo alarmante, pois revela um desconhecimento total do que é a História, a Política, a Sociologia dos diferentes povos e regiões.
E mais alarmante é ainda por ser um fenómeno que tem afectado grande parte do mundo ocidental, ao longo dos últimos séculos. Enfim, uma matriz psicossocial que nos formata e dificulta uma real mundividência.



Mas Kundera não é apenas um grande escritor ou um analista de apurada subtileza do fenómeno político. É também um estudioso das correntes musicais que atravessaram o século XX. Ao comparar a literatura com a música, diz-nos, no capítulo “ A Recusa Integral da Herança de Iannis Xenakis”:
“ Por mais que um Stravinsky rejeite a música como expressão de sentimentos, o simples ouvinte não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música, é o seu lado animal. Basta que um violinista toque três primeiras lentas notas de um largo para que um ouvinte sensível suspire: «Há que maravilha!». Nestas três primeiras notas que provocaram emoção, não há nada, nenhuma invenção, nenhuma criação, absolutamente nada: o mais ridículo «embuste sentimental». Mas ninguém está livre dessa percepção da música, deste suspiro ingénuo que suscita”.
A música ocidental baseia-se no som artificial de uma nota, de uma gama; é assim que se encontra no oposto da sonoridade objectiva do mundo. Está ligada , desde o seu aparecimento, por uma convenção de insuperável, à necessidade de exprimir uma subjectividade.”

Ora, esta “subjectividade” não tem necessariamente paralelo na literatura: James Joyce, “o profeta da insensibilidade”continuará sempre a ser um romancista. Xenakis, pelo contrário, ao tomar partido pela “sonoridade ojectiva”, cortou todos os laços com as tradições musicais, situando-se num plano diferente, que dificilmente poderemos considerar música. Embora esta concepção seja discutível, revela uma tomada de posição extremamente curiosa.
Creio que os exemplos que acabei de citar nos dão uma panorâmica da riqueza do pensamento desta grande figura da cultura europeia do século XX e XXI.

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