quarta-feira, 13 de julho de 2011

“Tu és a minha terra” in Sparkenbroke de Charles Morgan


Só Para o Meu Amor é Sempre Maio

Cartas do Verão de 1943

de António José Saraiva / Maria Isabel Saraiva

1997, Gradiva

Em tempos idos eram as cartas… Levavam e traziam sentimentos, despertavam e acalmavam saudades. Cada tempo tem o seu quê de vantagem. Não gostaria de prescindir, hoje, das vantagens da comunicação mas lamento a perda das cartas. Havia um lado bom na sua lentidão, no seu registo perene, na possibilidade de se poderem acariciar nas mãos. Não, não dá para colocar uma fita à volta de uma panóplia de mails, ou sms, chorar sobre eles ou estreitá-los de encontro ao coração. Por muito démodé que seja o meu lamento é um lamento.

Este livro, agora relido, consta da correspondência trocada entre António José Saraiva e sua futura mulher, Maria Isabel Saraiva, durante os meses de Verão de 1943. As suas cartas permitem-nos acompanhar o enamoramento, pinceladas da vida profissional, dilemas pessoais, registos da época, quase como uma autobiografia a duas mãos.

Tudo começou, segundo ela conta, numa aula dele a que ela assistia, quando ele era primeiro-assistente do professor Vitorino Nemésio.

“A menina não se importa de desenvolver mais o que disse? Gostei muito de a ouvir. As suas palavras ficaram a dançar no ar.”

Começou aí e as palavras continuaram a dançar… O António esperava-a à saída da Faculdade de Letras e iam da Rua do Arco até Santos, onde ela apanhava o eléctrico para Belém. Ambos gostavam de andar a pé, gosto que mantiveram vida fora. Falavam de tudo, da guerra, raramente de política, sobretudo de Literatura. António gostava muito de Camões, é de um soneto de Camões, de que António gostava particularmente, o título deste livro.

Quando se conheceram a Isabel namorava outro rapaz, um bom partido, com o qual se sentia incompreendida. António começa por ser seu confidente, o namoro só começará mais a tarde, a 8 de Julho precisamente, segundo ela conta. Têm a oposição da família, até no casamento que acontecerá a 16 de Outubro do mesmo ano, em cerimónia simples, também por esse facto, nos Jerónimos.

As cartas de um e de outro contam das impaciências e da paciência. De detalhes e contratempos próprios da época: no mandar um telegrama, fazer um telefonema, uma viagem ou do receber uma encomenda de livros. Desfiam-se os relatos das hora a que se escreveu, da data em que a carta devia ter chegado, da circunstância em que chega… Num ritmo lento que parece tornar meses em anos. Neste passeio ao passado acompanhamos tricas dos colegas da Universidade, Vitorino Nemésio, Óscar Lopes, Agostinho da Silva... As relações familiares, as dificuldades económicas. É curioso o preciosismo com que enumeram os gastos, os preços do que compraram ou pretendem comprar. Detalham pequenos nadas que só se partilham com o beneplácito do amor e da ternura.

A relação de Isabel e António cria um espaço próprio apesar de muito condicionada por tudo o que gira à volta deles. Passamos pela História, episódios com a censura, notas de exames da Faculdade, um desentendimento do António José Saraiva com Vitorino Nemésio (ficarão de relações cortadas e apenas Isabel continuará a relacionar-se com ele). Andanças várias com detalhe dos lugares e pessoas que vão cruzando as suas vidas. Falta-lhes a loucura das grandes paixões, são comedidos na ousadia. A leitura das cartas permite-nos fazer um esboço da maneira de ser de um e de outro, ainda em fase de definição e ver, na época, um certo lado preconceituoso e conservador de ambos. Numa carta António admoesta-a pelo facto de se ter pintado, facto que ele descobre através de uma foto. E na carta seguinte ela justifica-se, entregando-lhe a razão, algo submissa e recatada como era suposto uma boa mulher ser na época. Noutra ela assume a sua dificuldade em relacionar-se entre cheiros ou tarefas mais “populares”. No entanto, Maria Isabel vai revelando nas cartas uma força uma capacidade maior, por acção ou conciliação, de resistir a adversidades. Interessante a forma como o lado feminino evolui e ancora uma relação. António dizia-o embora, creio, sem ter total consciência do alcance do dito: “Tu és a minha terra.”

Interessante a referência aos livros e histórias de amor que os entusiasmam e que eles comentam nos pontos em se sentem mais próximos ou mais afastados, como Sparkenbroke ou Tristão e Isolda, na tentativa de chegarem à melhor definição do que sentem um pelo outro, de encontrar um caminho, uma vida comum dentro da harmonia. Ou as reflexões sobre o pecado e a moral seja nos sentimentos seja na forma de ver o mundo exterior a eles. Lemos sugestões para a uma tese, conselhos para um trabalho ou recomendações sobre a saúde. Preocupações dele pela magreza dela. Ou os planos para mobilar a casa com parcos recursos. Tudo parece arquitectura de um plano maior para o seu amor.

“quando nos encontrámos começamos a a caminhar naturalmente como se sempre tivesse sido assim” AJS

"Estou mais triste que contente mas é uma tristeza calma e sossegada" MIS

“O correio de hoje não trouxe carta tua. Ontem, antes de te conseguir falar, tive uma grande questão com o telefonista do hotel” AJS

"O Correio da Guarda chega cá às 9h30m da noite. Não chegaste a comprar a gravata? Gostei muito de falar contigo ontem. Foi o dia em gostei mais. Pareceste-me muito simpático. Responde às minhas cartas" MIS

“Ontem pensei que, se tu morresses, eu também morria. Só posso pensar a vida contigo. Que coisa extraordinária!” AJS

"Quando eu penso que poderíamos não nos ter encontrado falta-me logo o ar, sinto o desespero de quem quer respirar e não pode" MIS

“Tem confiança em mim. Eu sou uma cousa segura. Tenho a certeza que no fim da vida pensarás que valeu a pena viver comigo. Valeu, porque tu vieste comigo.”AJS

"Eu sinto saudades de tudo de ti. Tenho saudades de falar contigo, de apertar as tuas mãos, de andarmos de ombro a ombro. " MIS

“Meu amor, não te sei dizer mais nada. Logo telefono-te. Mas a telefonar-te também não me sinto bem. Estamos a 12 de Agosto. Vais-te embora daqui a oito dias. O tempo parece-me comprido. O que já passou tem custado a passar; mas o que está para vir ainda mais. Ainda não “criei a situação” de estar longe de ti. “AJS

"Não desperdiçamos hora a hora uma riqueza que nunca mais recuperaremos. não leias isto como umas palavras quaisquer, vê se por detrás das palavras consegues sentir a força e a vida das coisas"MIS

“Sinto cousas para te dizer esta noite. Quando te escrevo agora fujo para o meu país. Às vezes todo o mundo à roda me parece tão diferente do nosso país. Tu és a única pessoa com quem posso ser ingénuo e crente. Mas nós dois juntos talvez possamos ser ingénuos e crentes no mundo” AJS

"Cada dia que vier é uma prova e eu quereria muito que no fim do dia pudéssemos dizer que vencemos" MIS

Há uma certa puerilidade. Estamos em 1943… Não é de todo a única justificação, mais que a época pesam, talvez, as características da personalidade de cada um. Não sei como terá sido depois. Se o apaziguamento que ansiavam os deixou menos românticos. Não fui à procura de detalhes do seu relacionamento posterior. Mas é elucidativo e enternecedor o que escreve Isabel, no prólogo, sobre o efeito da leitura das cartas à data da publicação:

“Depois… a vida foi o que foi. Mas houve coisas boas e muito bonitas: uma delas são os três filhos, o António, o José António e o Pedro. Hoje ao reler as cartas, apaixonei-me – e não digo tornei a apaixonar-me porque os sentimentos não se repetem - por quem as escreveu, e amei aquele homem como se fosse pela primeira vez, como se nada do que se passou entre aquele Verão de 43 e hoje tivesse acontecido”.

Maria Isabel revela nesta breve introdução uma capacidade de análise distanciada e lúcida distinta já da Menina e Moça que parafraseava Bernadim Ribeiro. Revela o seu lado de mulher mais capaz de decompor e analisar a realidade, de agir com força e determinação por entre as vicissitudes da vida, sobre os seus pequenos desencantos.

Qualquer pessoa apaixonada sonha, romanticamente, cartas que cheguem pelo meio dos dias comuns sem mais razão que aquela que o coração dita. Anoitecem os dias, ensombra-se o espírito na espera se o carteiro não tocar, uma, duas vezes, ad eternum … O momento escrito permite guardar a memória do vivido e, assim, na leitura, ser revisitado, vivido, ad eternum

Se esta partilha de livro vos inspirar à leitura terá cumprido sua missão. Se vos colocar no trilho da escrita epistolar alguém por certo vos agradecerá.


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