“Como Carne Em Pedra Quente”
Ana Sofia Fonseca
Clube do Autor
O
livro veio parar às minhas mãos por um acaso, aberto na página 22. Comecei a ler, a ler, e foi
lido como se tricotasse para entreter o tempo e de repente me visse incapaz de
parar o movimento das mãos hipnotizadas pelo ruído das agulhas. E regressei depois do final ao princípio.
É
o primeiro romance da jornalista Ana Sofia Fonseca e constrói-se à volta da narrativa
de uma mulher sentenciada de morte. O médico dispara à queima-roupa e deixa-nos
divididos entre o imenso peso da sentença de morte e a indignação pela insensibilidade
que nos coloca na realidade familiar de muitos homens e mulheres "assassinados" com
o corte brutal da esperança. Em passo rápido como se acompanhássemos uma maratona
ficamos contaminados com o cansaço mas não desistimos. Algures queremos chegar
à meta. Laura, é uma mulher sobrevivente de um cancro, amputada de um peito, a
morrer de SIDA, que vai gravando para a sua filha uma herança de memórias e nesse
registo leva-nos ao seu passado, às memórias dos seus antepassados. No limite
das suas forças, uma mulher doente, bem e mal-amada, perseguindo vários fios da sua
história.
Ana
Sofia Fonseca tem talento para nos fazer reagir às palavras, pode-se gostar ou
não, mas não ser indiferente. Não há palavras de consolo quando não há
esperança.
E,
seguimos o ajuste da memória, a preocupação pela
filha, a incapacidade de comunicar com quem ainda ama, na dúvida de ser ainda
amada.
O
livro é atravessado por muitas leituras dobradas. Algures nas entrelinhas encontro
Mia Couto, embora não nomeado, e o citado “Em nome da Terra” de Vergílio Ferreira a
fazer sentido na solidão, no peso da morte, na crueza de toda a escravatura
fisiológica e escatológica dum corpo.
O
quotidiano segue sem voos, em passos certos e crus. E, de quando em quando, no
regresso ao passado chegam alguns ecos de realismo mágico a prometer-nos uma história
maior. Há livros, primeiros livros que cumprem tudo e nos deixam a interrogação
se depois o segundo chegará ao mesmo patamar. Este, pelo contrário, abre
diversas linhas narrativas que hão-de por certo cumprir-se em romances futuros.
Assim
prometem os mortos guardados dentro dos vivos.
“
Como carne em pedra quente” é a chave de um passado.
Não
há redenção. Fechado o livro, respiramos de alívio. Podemos sair para a rua em
busca do sol, libertos
das sombras. Ficamos com farripas de memórias, a professora Lurdinhas, um anel
de ouro branco com duas pérolas como muitos relembram numa mão a acenar em muitas infâncias, uma avó analfabeta e sábia. “Os mortos não voltam” embora não partam enquanto vivem dentro dos vivos. Lisboa, África. Lutos vários.
Guerras atravessadas, de Espanha a África. Olhos de lua e lágrima de rio. Teão,
o vizinho do primeiro esquerdo. Um disco de um tango mil vezes repetido. ,Uma
Maria Valente de bordel,
tecedora do paraíso de um viúvo avô, que sentencia:
“Senhora Puta rende mais que senhora de Fátima” (…) “Sem a devoção dos homens, ambas não são nada."
“Senhora Puta rende mais que senhora de Fátima” (…) “Sem a devoção dos homens, ambas não são nada."
Há
uma memória geracional aqui aflorada, de fugida e com insistência. Puerilidades de infância, sonhos de mulher, desejos
não atendidos. Fica a
sensação de que mais haverá a dizer dessa memória de África. Um ajuste de
contas ainda a cumprir-se.
Restos de memórias felizes. Promessas de futuro. Presente.
A morte só acontece quando não há peitos de vivos para guardar os mortos. A morte de Laura dolorosa de dupla maneira na carne e na ausência dos seus amores. Laura a morrer no esforço de um gesto belo e heróico e altruísta de devolver um sentido à espera de dois corações. A vida pode separar os que se amam mas a morte não.
A beleza de algumas palavras e a crueza dura de outras cruzam-se
como lantejoulas brilhantes entrelaçadas num tricô de linha áspera e baça. A
história toca-nos ora como serapilheira sobre carne queimada ora como brisa e água
fresca.
Não quero desvendar nada, leiam.
Deixem-se levar.
Deixem-se levar.
Por um tango de Gardel… “sus ojos se cerraram”
“burlándose
el destino me robó su amor”
“Sem
ti…”
“Eu
também…”
“Como
Carne em Pedra Quente”
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