A evolução da humanidade esteve desde sempre fundamentalmente ligada ao desenvolvimento científico e tecnológico. Foi através das descobertas da ciência que o modo de pensar baseado na superstição e no dogma foi substituído e finalmente abandonado. E apesar de existirem bolsas geográficas e segmentos na sociedade que ainda insistem em ver o mundo segundo padrões pré-científicos, a ciência é a forma hegemónica de interpretar e relacionar os factos do mundo concreto.
Essa dimensão social da ciência levanta inúmeras questões acerca do valor económico das descobertas científicas e, em última instância, sobre a independência dos protagonistas. E naturalmente, não há porque assumir que esses condicionantes não influenciem a leitura histórica das descobertas quando colocadas em perspectiva. Mas para além dessas questões, há uma dimensão puramente epistemológica, que, pelo menos para os cientistas, é a mais fascinante de todas. Questões que poderiam ser sintetizadas em duas perguntas chave: Como se deve qualificar uma descoberta científica? Pelo seu pioneirismo, ou pelo espaço conceptual e metodológico que funda e abre? São em torno dessas duas questões que a interessante peça “Oxigénio” concentra o seu foco cénico, mais especificamente, através duma engenhosa alternância narrativa que situa os personagens em 1777 e em 2001, o ano do Centenário da instituição do Prémio Nobel.
Num interessante exercício de ficção, imaginam os seus autores, Carl Djerassi, figura central na síntese da pílula anti-concepcional, e Roald Hoffmann, Prémio Nobel de Química de 1981, que a Fundação Nobel decidiu instituir o Prémio “Retro-Nobel” de modo a galardoar as grandes descobertas que precederam a criação dos Prémios Nobel. Assim, a peça retrata como o Comité Químico da Real Academia Sueca das Ciências, encarregue da escolha pela Fundação Nobel, supõe inicialmente ter em mãos uma tarefa relativamente simples, dado que a ciência de então estaria mais livre de controvérsia, de disputas sobre a prioridade, e do sensacionalismo decorrente. Assim, decide o Comité Químico focar a sua atenção na descoberta do Oxigénio, que deu origem à revolução química. Nesse contexto, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) é uma escolha aparentemente incontornável, tendo em vista o conjunto dos procedimentos metodológicos que criou e que lhe permitiu no período de 1770-1780 explicar a natureza da combustão, da ferrugem, e da respiração animal, e do papel do oxigénio nestes processos. Mas o que dizer dos que efectivamente descobriram independentemente o fundamental elemento químico pela primeira vez? Mais concretamente, o farmacêutico sueco Carl Wilhelm Scheele (1742-1786), o primeiro a descobrir o "ar-fogo" supostamente em 1774, e o sacerdote unitarista inglês Joseph Priestley (1733-1804), que descobre o oxigénio pouco depois, mas que não abdica de interpretar a sua descoberta em termos da equivocada teoria do flogisto, segundo a qual todos os materiais combustíveis contém uma substância inodora, incolor e sem peso que é libertada quando da combustão.
Mas se em 2001 o Comité rapidamente percebe que qualquer escolha não estava livre de dificuldades, a situação não fica menos simples à luz dos acontecimentos de 1777, quando os três cavalheiros e as respectivas esposas são convidados do Rei Gustavo III da Suécia para expor as suas descobertas na sua corte em Estocolmo.
Um texto de grande interesse e com soluções cénicas de grande originalidade. Também digna de menção é a tradução do professor Manuel João Monte, professor de química da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
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