Partilhamos hoje
as palavras e a experiência de um leitor muito especial que prontamente aceitou
ser convidado dos 7leitores.
O nosso imenso obrigado a Eugénio Lisboa.
O livro – a leitura – a crítica
Na
adolescência, li muito, li vorazmente, desordenadamente, gostosamente, sem
planos preestabelecidos, à balda. De certo modo, é ainda esta a minha
metodologia – ler sem método, ao sabor do que me vem à mão e parece que me
apetece. É curiosamente, um bom método. Noto, por exemplo, que ao redigir um
trabalho qualquer sobre um autor qualquer, apetece-me, nesse momento, ler tudo
menos esse autor e aquilo que sobre ele se escreveu. E ponho-me, regularmente,
nos intervalos que roubo ao trabalho obrigatório, a ler as coisas mais diversas
e mais distantes da área em processo de investigação. Eis que, não raramente,
verifico que essas obras trazem, inesperada e deslumbradamente, água ao meu
moinho. Encontro nelas o que não procurara – e gloriosamente me serve. Os
religiosos dizem que Deus escreve direito por linhas tortas. Achar sem
procurar, receber sem para isso trabalhar – eis o produto de um amor
descabelado aos livros – mesmo sem o espartilho de um método que nos
constrange... Por isso compreendi tão bem e aplaudi do fundo do meu coração as
palavras de um grande poeta galês, de língua inglesa, Dylan Thomas, quando
observou: “ minha educação foi a liberdade que tive de ler em liberdade, o
tempo todo, com os olhos a saltarem-me das órbitas.”
Nisto
de ler, os apetites são os mais diversos: desde um D’Anunzio que confirmava a
um André Gide, espantado, ter lido tudo, até uma Nancy Mitford que,
provocante, gostava de dizer: “Em toda a minha vida, só li um livro e esse
livro foi White Fang [de Jack London]. É um livro tão tremendamente bom
que nunca mais me dei ao trabalho de ler outro.”
Os
locais de leitura variam igualmente: o sofá, a cama, de pé, a andar, na praia
(com muita areia à mistura), no combóio e até noutros sítios não mencionáveis
directamente mas talvez indicáveis dando um exemplo – para o caso, o grande
escritor americano, Henry Miller, que não se importava de confessar: “Todas as
minhas leituras foram, por assim dizer, feitas na retrete”.
O
leitor voraz lê para explorar, com intensidade, outros mundos – embrenha-se,
com volúpia, no casulo fechado dos mundos ficcionais, rejeitando, com firmeza,
a luz crua do mundo real que abandonou. A descoberta e exploração de novos
mundos é também uma descoberta de nós próprios. “Quando lemos um clássico”,
dizia Clifton Fadiman. “não vemos mais, no livro, do que víamos antes. Mas
vemos mais em nós do que em nós estava antes”.
Quando
o vício de ler – o “vício impune”, de que falava Baudelaire - toma conta de nós, nenhum sacrifício,
nenhuma infracção se interpõe entre nós e a aquisição do livro cobiçado:
“Quando eu tenho um bocadinho de dinheiro”, confessava Erasmo, “compro livros;
e se sobra algum dinheiro, compro então comida e roupas”. Quando eu era estudante
universitário, quantas vezes utilizei o dinheiro que meu Pai me enviara de
Lourenço Marques, para um fato, na aquisição de um ou outro volume caríssimo da
preciosa Bibliothèque de la Pléiade. O fato ficava sempre para o ano seguinte –
o livro é que não podia esperar.
A
minha adolescência foi rica em leituras apesar de, até certa altura, me não
sobrar o dinheiro para livros. Meu Pai lá iludia, de vez em quando, a
vigilância aturada da minha Mãe e ia-me trazendo, às escondidas dela, o último
livro acabado de chegar no último paquete vindo de Lisboa (eu vivia então em
Lourenço Marques, onde nascera). Mas as minhas principais fontes de leitura, a
partir dos 15 anos, foram duas: primeiro, as bibliotecas que os colegas de meu
Pai deixavam à sua guarda, quando vinham à Europa, de licença graciosa (a qual
chegava a durar 11 meses); a segunda, uma pequena biblioteca de perto de cem
espécies, que um colega de meu Pai, chamado Abel Menano, irmão do célebre
Menano dos fados de Coimbra, me ofereceu: ali encontrei obras preciosas que
ainda hoje conservo, de autores que nunca mais me deixaram: Dostoiewsky,
Tolstoi, Turguenev, Joseph Conrad, Balzac, Anatole France, D.H. Lawrence, Vitor
Hugo, eu sei lá!
Mas
havia ainda outra fonte, à qual devo a revelação de um dos meus grandes amores
de sempre. Essa fonte era constituída pelos volumes que, em viagem entre Lisboa
e Lourenço Marques, se estragavam por apanharem água salgada no porão dos
navios que os transportavam. Mandados para o refugo, alguns eram dali
recuperados por meu Pai, que mos trazia em triunfo, quais Lusíadas
estragadíssimos mas salvos por um bravo Camões na foz do Me Kong. Foi assim que
me chegou às mãos o mais belo romance que até hoje se escreveu – Le Rouge et
le Noir, de Stendhal, e, por ele, me foi apresentada a mulher por quem
nunca mais deixei de ficar em êxtase – a Senhora de Rênal, de Stendhal, que me
recuso a considerar criatura de ficção e a quem visito, em livro ou em sonhos,
quase todas as semanas. Eis como a literatura se pode tornar vida, mais vida até
do que a própria vida, mais intensa, mais reveladora, mais capaz de nos tornar
melhores, mais dedicados e mais fieis. A minha ligação à Senhora de Rênal e ao
seu criador, Stendhal, começada nos meus 14 ou 15 anos e ainda em vigor – é
algo que não admite dúvidas e de que muito me orgulho.
Foi
assim, com livros furtados ao controle materno, com livros fruídos em
bibliotecas de empréstimo e com volumes estraçalhados pelo oceano e roubados ao
refugo, que o meu vício de ler se foi desenvolvendo e me foi abrindo mundos a
haver: a maravilhosa Assia, de Turguenev,
descobriu-me mistérios de alma feminina e fez-me sonhar com paixões bizantinas
nos incomensuráveis espaços de uma Rússia remota e atormentada; O Lírio
Vermelho de Anatole France, ao mesmo tempo que me explicava melhor o ciúme,
que também me afligira, abria-me a visão esplendorosa de uma Florença que logo
ali jurei visitar; Les Thibault, de
Roger Martin du Gard, abriu-me Paris e deu-me o gosto secreto por uma Gisèle
que o pateta do Jacques deixou fanar-se de amor não retribuído, enquanto se
perdia nos labirintos psicológicos de uma Jenny tão complicada quanto
interessante; Panait Istrati dava-me a Roménia dos cardos do Baragan, tão
diferente de tudo quanto conhecia.
Nos
intervalos de me banhar nas águas do Índico, com o meu cão Nero, lia Plutarco e
Voltaire, mergulhava na Dinamarca de um dos melhores romances que até hoje li – Niels Lyne, de Jens Peter Jacobsen -
ou na Suécia de Sally Salminen, ou no Père Goriot de Balzac.
Pelos meus 16 anos, A Velha Casa,
de Régio, abriu-me as portas da adolescência atormentada de Lélito, que me
levou, dois anos mais tarde , já em Lisboa, a gastar um dinheiro , que minha
Mãe me dera para comprar bilhetes de combóio para as Caldas da Raínha, na
aquisição do segundo volume da descomunal Casa. Julgo que minha Mãe não se reconciliou nunca com esta minha
inesperada mas irresistível infracção.
Lia
os livros com paixão, mergulhava neles como quem quer sair do quotidiano, mesmo
de um quotidiano apetecido. Li um dia, já a viver em Lisboa, numa biografia do
escritor francês André Gide, que este, em viagem de carro, pela Europa, com
amigos, se pusera a ler, com absorção intensa, a Guerra e Paz, de
Tolstoi. O interesse que o livro lhe provocava era tão profundo que, ao pararem
o automóvel diante de algum museu, ou catedral ou palácio, Gide tinha que se
conter – com dificuldade – para não dizer aos companheiros que fossem eles
fazer a visita enquanto ele permanecia na companhia da Natacha e do Pierre do
romance de Tolstoi.
Ali,
no Índico, com o Nero à minha beira e com a leitura do melhor que o espírito e
o coração dos homens produziram, ia-me preparando para a grande aventura de me
arrancar àquele grande continente africano para vir conhecer o Portugal de
Lélito, o Paris de Martin du Gard, a Londres de Dickens e a Florença de Anatole
France.
Lia
com intensidade e atenção minuciosa e, quando viável, com o espírito crítico
que me era possível agenciar. Lia muito e procurava ler bem – e relia
interminavelmente os livros que já então me tinham marcado. Ler ao acaso, sim,
mas não ler sem reflexão: “Ler sem reflectir é o mesmo que comer sem digerir”,
dizia Edmund Burke. É possível ler-se muito sem que a leitura nos fecunde. Por
isso o grande (e recluso) escritor americano J.D. Sallinger, dizia com não
pouca verdade: “Sou bastante iletrado, mas li imenso”. Pode ter-se lido imenso
e ser-se razoavelmente analfabeto Num ensaio célebre, António Sérgio
estabelecia, com a firmeza e clareza que lhe caracterizavam a prosa
pessoalíssima, a diferença entre leitura abundante e leitura crítica; e
concluía que se pode ter lido muito e não se ser culto, do mesmo modo que se
pode ter lido relativamente pouco e ser-se culto. A natureza da leitura – ser
ou não ser uma leitura crítica – é que faz ou deixa de fazer o homem culto. A
leitura crítica é uma ginástica. “A leitura é para o espírito o que o
exercício é para o corpo”, observava Sir Richard Steele. É – ou devia ser.
Porque a leitura também pode ser uma forma de preguiça: lê-se para não pensar.
Enquanto leio, não penso... Mas leitura crítica não quer dizer resistência a
todo o custo às ideias que o livro propõe. Leitura crítica quer dizer leitura
vigilante, feita com a inteligência crítica estimulada, pronta a aderir ou a
rejeitar, conforme os casos. De contrário, cair-se-á naquilo que dizia o actor
Michael Caine; “Leio livros como um danado, mas tenho o cuidado de não me
deixar influenciar por nada do que leio”. O receio das influências é sempre uma
confissão de pobreza. As naturezas ricas e possantes absorvem tudo e tudo
transformam em produto seu. O grande poeta alemão Goethe dizia, com orgulho,
que tudo o influenciava, mesmo escritores de quinta categoria: em todos
encontrava sempre alguma coisa de interessante que ele próprio não tinha
descoberto.
Quando
se exerce uma actividade crítica, quando se ensina literatura nas escolas e
universidades, a nossa actividade enriquece-nos com tudo aquilo de que nos
lembramos e acorre automaticamente ao toque mágico do texto novo que
confrontamos. Disse algures que tenho praticado a crítica e o ensaio “como um exercício
criativo da memória. Ou antes um exercício criativo, a partir da memória.
Não concebo bem a crítica sem uma memória altamente estimulada e pronta ao
assalto”. O crítico George Poulet afirmou: “Criticar é lembrarmo-nos”. “Diante
de um texto, a memória excita-se e há um certo número de campainhas que começam
a retinir: umas mais próximas e nítidas, outras mais longínquas e difusas. Há
que investigar absolutamente tudo – pelo menos, em certos casos, não posso deixar
de o fazer: torna-se uma espécie de frenesi. De aí que um crítico desta
conformação tenha que ser, de certo modo, um eterno desarrumador de
bibliotecas.” Dito isto, há porém que apreciar, com cuidado, o uso que se faz
destes exercícios da memória: não se recorda pelo amor de recordar, recorda-se
como mecanismo estimulador de aproximações criativas. Não se ensina aos jovens
as grandes obras da literatura – ensina-se-lhes, isso sim, o amor à leitura.
Neste campo, contudo, os homens extremam-se de modo singular. Montesquieu, por
um lado, dizia nunca ter conhecido nenhuma depressão que uma hora de leitura
não curasse; por outro lado, o grande poeta inglês deste século, Philip
Larkins, macambúzio profissional e amante de jázz, observava (perdoem-lhe a rudeza)
que os livros não passam de um monte de trampa (era, curiosamente,
bibliotecário da Universidade de Hull). Há-os, como se vê, de todos os formatos
e cores.
O
espirituoso americano Logan Pearsall Smith gostava de afirmar, com o seu toque
de provocação: “As pessoas dizem que a vida é que é, mas eu cá prefiro ler.”
Pearsall Smith fazia, mais uma vez, a destrinça entre livros e vida. Destrinça
que comecei por recusar, no início desta minha conversa despretensiosa. O que se vive nos
livros e dos livros é muitas vezes – em ideias, em emoções – tão ou mais
intenso do que o que se vive na chamada e tão mal definida vida. Dizia
alguém que a vida é uma doença incurável. A vida que se contém nos grandes
livros é imune à doença. Por isso irá durar enquanto durar a aventura humana.
Eugénio Lisboa
Eugénio Lisboa
Leitor convidado: Eugénio Lisboa nasceu em Lourenço Marques, a 25 de
Maio de 1930. Licenciou-se em Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior
Técnico. Exerceu a sua actividade como engenheiro a par da docência de cursos
de Literatura Portuguesa em Universidades (Lourenço Marques, Pretória e
Estocolmo). Foi conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Londres e
presidiu à Comissão Nacional da UNESCO. É, também, poeta, ensaísta, cronista e
crítico literário com vasta colaboração em revistas e jornais moçambicanos e
portugueses.
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