... the things that wear you down are also the things that nurture your talent. Yes, there is mystery upon mystery to be uncovered once you abandon the disguises of autobiography and hand the facts over for imagination to work on.
The Facts
Philip Roth
Imagine um escritor que aos 55 anos decide, por força duma inevitável crise de meia idade, escrever a sua autobiografia: a infância numa família equilibrada e dedicada; a adolescência pontuada pelos acontecimentos e incidentes típicos dessa fase existencial; a descoberta do gosto pela literatura e os primeiros textos; os anos decisivos de formação em universidades menores por força da falta de recursos financeiros da família e do sistema de quotas que restringia o acesso de minorias "raciais"; as primeiros posições universitárias como professor de literatura; os "combates" contra críticos e detractores; e sobretudo, as marcantes e fundamentais experiências amorosas.
Imagine também que o escritor, peça a um dos seus personagens que examine o manuscrito e dê a sua opinião. Não um personagem qualquer, mas um dos mais emblemáticos, um personagem cuja "biografia" é apresentada ao longo de vários livros, um escritor judeu norte-americano, 10 anos mais jovem de apelido Zuckerman.
Imagine que o escritor fictício, após a leitura do manuscrito, recomende fortemente ao seu criador que não publique a obra, apresentando a sua crítica em vários planos de argumentação:
Há críticas assaz acutilantes sobre a sobriedade da biografia apresentada. Os elementos? A modesta família judia na suburbana Nova Jérsia, com o seu transbordante bom senso e a sua constante dedicação aos filhos; a tenacidade laborativa do pai contra as adversidades inerentes à sua condição e à sua falta de qualificações; a incansável mãe com o seu optimismo realista; a vizinhança e a escola frequentada por filhos de famílias judias não ortodoxas da classe média baixa; os ídolos desportivos da juventude; os livros essenciais e a paixão pela literatura inglesa; uma quase obsessão pelo relacionamento com mulheres não judias e profundamente problemáticas. Sem dúvida, elementos cardinais, argumenta Zuckerman, mas descritos com uma sobriedade que não é explicativa e que não descortina nada do que é essencial. E o gosto pela literatura?, identidade fundamental, que parece ter nascido por geração espontánea, critica Zuckerman. E donde vem o mistério da necessidade de escrever?, pergunta Zuckerman. Sim, o esforço de escrever é mencionado, mas nada é dito sobre os seus mecanismos internos. Como explicar então algumas das rupturas mais marcantes da obra de Roth? Qual é a génese de Portnoy (outro personagem marcante) e de Zuckerman?, pergunta Zuckerman.
Sim, continua Zuckerman, as mulheres "problemáticas" são centrais em muitos livros e contos, muitas vezes em transcrição quase literal, mas a origem da necessidade de buscar estas ligações é apresentada apenas factualmente, sem qualquer análise, ou melhor psicanálise.
E há a crítica do que não é explicitamente dito, mas que retoricamente significa exactamente o contrário, a bem conhecida figura retórica, occupatio, de Cícero: "Não falemos da riqueza do Império Romano, não falemos das suas majestosas tropas de invasão, etc,". Porém, para um escritor, "os factos, no que concerne à sua identidade de escritor, referem-se necessariamente à inerência de ser escritor. Contudo, há uma infinidade de outros factos, todo o material que gira em torno e que não é coerente ou supostamente importante.". Na verdade, o que o escritor fictício quer dizer é que depois do "Complexo de Portnoy" torna-se impossível descolarmos Philip Roth daquela personagem particular criada pela sua imaginação. E o facto de não haver nos anos de formação de Roth traços de Portnoy (e Zuckerman), parece ser uma figura retórica, ou pior, uma insinceridade.
Finalmente, há o plano do auto-interesse. O escritor fictício revolta-se com a injustiça de estar preso a uma existência que depende da imaginação do escritor real. O escritor fictício, mesmo numa fase de radical transição, a viver em Inglaterra com uma jovem educada em Oxford, não se conforma com o facto de não ter hipótese de poder se libertar das suas raízes, e por culpa do escritor real! E mesmo o seu talento e imaginação nunca serão mais do que imagens especulares da do escritor real, queixa-se Zuckerman!
Bem, são esses os traços mais salientes dum livro estimulante, que ``à maneira de Cícero", evita tocar explicitamente na questão do processo criativo, mas que na verdade, discute-o incessantemente e in vitro. Interessante para os que procuram um primeiro contacto com a obra de Philip Roth, reveladora e fundamental para os conhecedores e admiradores da prosa sofisticada e imaginativa do escritor norte-americano.
Orfeu B.
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