Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e foi para o Brasil com dois meses de idade. Viveu com os pais em várias cidades e acabou por se fixar no Rio de Janeiro, onde morreu em 1977. Por muitos críticos considerada a mais importante escritora de ficção de língua portuguesa do século XX, Clarice publicou, em 1944, o romance "Perto do Coração Selvagem", o primeiro dos 26 livros que constituem a sua obra (contos, romances, crónicas e literatura infantil). Obra de juventude, nela já está contido o essencial do universo clariciano: os temas que irá desenvolver, as estruturas narráticas básicas, que permitem transformar as emoções, os pensamentos das personagens em texto literário de uma densidade nova na língua portuguesa. E - sempre - a invenção de uma linguagem muito própria, não só feita de imprevisto no manuseio da terminologia (às vezes, quase barroca), como também na construção da frase (quantas vezes, apenas assente na repetição). Uma linguagem em que os silêncios dão sentido ao que foi dito e ao que ficou por dizer[1].
Para que se possa escrever assim, com subtileza, com força, com magia, é preciso amar a sua língua. E é o que acontece com Clarice: "Amo esta língua" (diz-nos ela). "Não é uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe medo. Mas eu gosto de manejá-la – tal como outrora gostava de montar um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a galope."
Se a palavra é o seu domínio (sobre o mundo, sobre si mesma), a escrita é a sua vocação: "(...) nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei porquê, foi esta que eu segui. Talvez porque, para as outras vocações, eu precisaria de uma longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E para escrever, o único estudo é mesmo escrever."
Para Clarice, escrever é viver. Numa entrevista concedida alguns meses antes de morrer, ela diz: "Quando não escrevo, estou morta." E termina a entrevista afirmando: "Neste momento, estou morta. É do meu túmulo que vos falo."
De entre os seus múltiplos textos, eu queria fazer sobressair as suas crónicas, os seus contos. Fundamentalmente por uma razão: é nos seus "escritos fragmentários" que se encontra muito do que é essencial à sua literatura. E, entre esses textos, sobressaem as crónicas, nomeadamente as que escreve para o "Jornal do Brasil", do Rio de Janeiro. É ela, ainda, que nos fala da sua perplexidade sobre a sua escrita enquanto cronista: "(...) um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crónica, e disse-lhe desesperada: "Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?" Ele me disse: "É impossível, na crónica, deixar de ser pessoal. Mas eu não quero contar minha vida para ninguém (...)"
Crónicas que, quer ela queira, quer não, constituem pedaços de si própria. Crónicas que ela, por vezes, transforma em contos ou integra nos seus romances. Romances nos quais brilham esses "indícios de oiro", que lhes conferem luminosidade, transcendência. Clarice, uma escritora do fragmentário? Sim, em grande parte. A própria técnica de recolha de elementos para a sua escrita aponta nesse sentido: ela recolhia, em tudo o que fosse papel, os acontecimentos, as emoções, os pensamentos que lhe iam surgindo no fluir do seu quotidiano. E será exactamente a partir desses fragmentos que poderemos penetrar no que é essencial à sua escrita: a epifania.
O conceito de epifania tem uma origem bíblica e, nesse sentido, poderá definir-se como sendo a irrupção de Deus no mundo. No Antigo Testamento, a epifania está ligada ao "ouvir", no Novo Testamento, ao "ver". Ora, na literatura do século XX, este conceito revelou-se extremamente fecundo, tanto na construção do texto, como na sua análise. O seu êxito deve-se a James Joyce, o qual, na opinião do seu principal biógrafo, Richard Elmann, o foi buscar à Epifania do Fogo, primeira parte do livro de Gabriel d'Annunzio, O Fogo.
Mas Joyce nem sempre entendeu o mesmo por epifania. Em Stephen Hero, escreve: "Por epifania, ele (referia-se a Stephen) entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto no meio das palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registar tais epifanias com extremo cuidado, pois elas representam os mais delicados e fugidios momentos da vida."
Mas se em Stephen Hero a epifania corresponde a um modo de ver o mundo, já no Retrato do Artista Quando Jovem será um "processo de criar um universo, por meio da palavra poética." Neste livro, já não se "experencia" a vida, mas pretende-se, sim, reconstruir o mundo. Para Harry Larvin, citado por Olga de Sá, Joyce pretende, em última instância, "criar um substituto literário para as revelações da religião." A sua última obra, Finnegans Wake, é a expressão final desta intenção (já evidente no Retrato e em Ulisses). Se quisermos simplificar o que dito foi (o que é sempre perigoso quando se trata de Joyce), poderíamos formular a questão deste modo: a epifania joyceana começou pela palavra e atingiu a sua plenitude na estrutura e na dinâmica da linguagem da sua "escritura".
Caminho diferente foi o de Clarice, conhecedora que era da obra de Joyce. Conhecimento de Joyce, sim, mas também influência sua, a começar pelo título do seu primeiro livro, "Perto do Coração Selvagem", extraído de uma frase do "Retrato do Artista Quando Jovem": "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida." E, na verdade, em Clarice, a linguagem está perto do coração da vida. É pela linguagem que ela pesquisa e encontra – e se encontra! A linguagem é o instrumento que lhe permite estabelecer a "escritura" que a ultrapassa – e a salva. "Escritura" que tem a epifania como processo, não como técnica. Em última instância, podemos dizer que toda a linguagem, em Clarice, é epifánica. E nisso se distingue de Joyce, pois, desde o seu primeiro livro, toda a sua obra se poderá caracterizar como uma epifania do eu.
É nos pequenos textos que o processo epifânico se torna mais evidente. Não só o processo, como também o que dele resulta, ou seja, o esplendor estético da sua prosa poética. Para terminar, transcrevo um dos textos que integram "A Descoberta do Mundo'', e que constitui um exemplo preciso do que afirmei: "Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Pôr puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe."
Estamos, pois, perante uma situação clássica de epifania, de iluminação feita amor, carinho, de identificação com o Belo, o Bem. Mas o texto (extraído do conto "Perdoando Deus") não pára, continua: "E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos. Toda trémula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois factos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois factos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar?"
"Os dois factos (diz Clarice) tinham ilogicamente um nexo". A sua ligação não é, pois, do domínio da lógica; é, sim, do foro do não racional (não do irracional). Ou seja, do âmbito do epifánico. Ou, mais precisamente, estamos na presença de duas epifanias: a última, de sentido negativo, a funcionar por contraposição à primeira. E será exactamente através deste jogo de claros e escuros que o texto ganha uma espessura, uma densidade, muito características – a espessura, a densidade que transformam a "escritura" de Clarice Lispector num caso único na ficção de língua portuguesa do século XX.
Este texto foi lido na apresentação da obra de Clarice Lispector “A Descoberta do Mundo” (editada por Indícios de Oiro).
[1] Sobre o silêncio em Clarice Lispector, consultar Menegolla, Ione Marisa, A Linguagem do Silêncio, São Paulo, HUCITEC, 2003.
1 comentário:
Uma aprendizagem, ou o livro dos prazeres. para mim o melhor de clarice lispector. e um excelente exemplo desses silêncios cheios.
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