Mário Samigli era um literato com quase sessenta anos. O romance que publicara havia quarenta anos poder-se-ia considerar morto se neste mundo soubessem igualmente morrer as coisas que nunca chegaram a estar vivas. Desalentado e um pouco enfraquecido, Mário, por seu lado, continuou durante muitos anos a viver uma vida pachorrenta que um empregozito de poucas chatices e pequeníssimo rendimento lhe proporcionava. Uma vida assim é higiénica e torna-se ainda mais saudável se, como acontecia com Mário, é temperada por um belo sonho. Na sua idade, continuava a considerar-se destinado à glória, não por aquilo que fizera, nem por aquilo que esperava poder fazer, mas assim mesmo, porque uma grande inércia, essa que lhe impedia qualquer rebelião contra a sua sorte, o preservava do cansativo trabalho de destruir a convicção formada na sua alma há muitos anos. E isto acabava por demonstrar que até a potência do destino tem um limite. A vida tinha-lhe partido alguns ossos, mas deixara-lhe intactos os órgãos mais importantes, dos quais certamente depende a glória. Mário atravessava a sua triste vida sempre acompanhado por um sentimento de satisfação.
Italo Svevo
Italo Svevo, que literalmente significa italiano da Swabia, é o pseudónimo do homem de negócios Aron Ettore Schmitz (1861 - 1928) que viveu em Trieste e é o autor de "A Consciência de Zeno", uma obra maior da ficção do século XX. O seu estilo marcadamente confessional foi fortemente influenciado pela psicanálise de Freud. A sua singular obra, praticamente toda publicada em edições de autor, teria muito provavelmente caído no esquecimento se não fosse o esforço de James Joyce em divulgá-la. Joyce conheceu Schmitz em 1907 em Triste enquanto estudante de inglês. Lê então "Senilità" de Svevo, obra que fora publicada em 1898 e que havia sido completamente ignorada. Joyce apoia decisivamente a publicação de "A Consciência de Zeno" em França, onde o livro é acolhido com entusiasmo. Schmitz é também o modelo do judeu convertido Leopold Bloom, protagonista de o "Ulysses", a obra maior de Joyce.
Escrita em 1926, a novela "Um Embuste Perfeito" conta-nos a melancólica história dum literato que aos sessenta anos vive à espera da aclamação do seu romance de juventude, que não havia despertado qualquer reacção de público e crítica quando da sua publicação. A convicção na glória tolda completamente a razão do protagonista e leva-o a adoptar uma atitude arrogante relativamente à literatura do seu tempo. Um pretenso amigo, caixeiro-viajante de profissão, decide aproveitar a ingenuidade do protagonista e submetê-lo a um embuste. Convence-o que uma importante casa editorial de Viena estava interessada na tradução da sua obra. Vivendo entre a ilusão e a realidade, o protagonista acaba por descobrir que tudo não passava dum vil embuste, mas não antes dum irónico desenlace que lhe permite receber metade da quantia acordada no pretenso negócio com o editor austríaco devido a uma brusca variação de câmbio entre a lira e a coroa austríaca.
Uma novela de grande interesse que retrata, apesar das inevitáveis distinções de grau, o estado de espírito de todos os literatos. Há também uma moderada exaltação da literatura enquanto meio de expansão espiritual, independentemente da modéstia das condições materiais e objectivas de vida dos autores. O protagonista vive precariamente e a sua vida não se dilata para além da dependência emocional dum irmão mais velho e doente, e da compreensão benevolente do seu patrão. Esta benevolência suscita-me uma inevitável associação com o patrão Vasques do guarda-livros Bernardo Soares.
Orfeu B.
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