sábado, 12 de junho de 2010
AS PERTURBAÇÕES QUE NOS CHEGAM DE ESPANHA
“Perturbaciones. Antología del relato fantástico español actual” é o título de uma obra organizada e prefaciada por Juan Jacinto Muñoz Rangel e publicada pela “Salto de Página”.
Publicação que me surpreendeu por várias razões: em primeiro lugar, pela qualidade de grande parte dos textos seleccionados; em segundo, pela quantidade de obras deste género literário editadas em Espanha; em terceiro, pela relevância que o contismo tem actualmente em Espanha, como se comprova, não só pelos numerosos prémios concedidos a este género (prémios nacionais, provinciais, locais, institucionais), como também pelo interesse que as casas editoras manifestam por livros de contos.
Antes de entrar no conteúdo da obra, propriamente dita, queria fazer uma referência ao prefácio de Muñoz Rangel. É um texto muito bem elaborado, que analisa e aprofunda o conceito de literatura fantástica, mostrando a sua especificidade em relação a outros géneros (ou subgéneros) afins, como o realismo mágico ou a literatura maravilhosa, ou, ainda, a literatura de terror (e a literatura gótica). Literatura fantástica que se distingue, também, da ciência-ficção (em português será mais correcto o termo “ficção científica”?) e da literatura surrealista propriamente dita.
Não me compete, neste escrito, desenvolver o conceito de literatura fantástica e sua distinção de géneros afins. Mas, para uma primeira abordagem, transcrevo a seguinte nota apensa ao prefácio:
É o Doutor Jekill o primeiro que se surpreende com a sua transformação em senhor Hyde, uma surpresa semelhante à das outras personagens da história que vão deparando com o insólito fenómeno; pelo contrário, Gregorio Samsa e, sobretudo, o resto da sua família encaram com uma certa naturalidade a sua (respectiva) transformação. Por outro lado, nenhum dos Buendía revela (qualquer) assombro perante os prodígios que vão acontecendo à sua volta, tal como, naturalmente, não o fazem elfos ou hobbits. E, no entanto, as duas primeiras leituras provocam nos leitores uma inquietação e uma hesitação intelectual distintas das sensações provocadas pelas obras do realismo mágico ou da literatura maravilhosa. Assim, a perplexidade existe independentemente da conduta das personagens, porque radica na concentração, na forma como se enfatizam determinadas anomalias.
O fantástico não se situa, pois, fora da realidade. Aceita-a e explora-a até aos seus limites (ou, até, para além dos seus limites). A perplexidade, a inquietação que o leitor experimenta (o leitor, note-se, não as personagens da história) decorrem da “concentração, na forma como se enfatizam determinadas anomalias ”.
No final do seu prefácio, Muñoz Rangel dá uma panorâmica dos temas abordados nesta sua obra:
Como o leitor poderá comprovar, decidido a empreender a leitura destas páginas, as temáticas do fantástico espanhol são tão amplas quanto as anomalias, lacunas e interrogações que a nossa explicação do mundo deixa por responder. Encontramos de tudo. Anomalias e perturbações para todos os gostos. Num constante braço de ferro com os limites da nossa realidade. Entrem. Entrem e leiam. Leiam sobre a morte e a vida depois da morte, os ressuscitados, os espectros, a imortalidade, o paraíso, o limbo e o inferno. Sobre Deus e o Diabo, a origem e o fim. Leiam sobre os mundos paralelos, os laços no tempo, a predestinação ou as viagens no tempo. Sobre a duplicidade, a simetria, a identidade e as conexões invisíveis. Leiam tudo sobre as interacções entre realidade e ficção, metaficção e metaliteratura. Sobre os sonhos e os pesadelos. Sobre as transformações impossíveis de homens e mulheres, de objectos e animais. Leiam acerca da pré-ciência, da telepatia, da telecinesia, e de todas as alterações das capacidades cognitivas, as da memória, as da personalidade, as da percepção. Leiam. Leiam e desfrutem o calafrio e a vertigem sentidos ao aproximarmo-nos da beira do abismo.
Ao acaso e apenas como exemplo, citarei alguns dos textos que mais me impressionaram. Textos em que a imaginação é o suporte para as construções imprevistas, que nos fazem viajar por mundos desconhecidos. Assim, em “Una cita aplazada sine die”, Luis García Jambrina fala-nos da leitura como forma – absoluta – de vida. Alguém que sente a Morte aproximar-se e lamenta que ela surja naquele momento em que ainda não tinha terminado o livro que estava a ler. O que deixa a Morte surpresa, pois não é a vida que se lamenta deixar, mas um livro, cujo desfecho ficará a desconhecer-se, assim, para todo o sempre. Esse livro e todos os outros livros da biblioteca desse leitor, que, assim, não terá tempo de ler. Livros que ele considera imprescindíveis para tudo conhecer o que à Vida e à Morte respeita. O que surpreende ainda mais a Morte e a deixa curiosa, a querer saber o que os livros dela dizem. E a fim de ficar a saber o que dela se tem escrito, a Morte adia o fim daquele leitor, com a condição de ele lhe ir lendo e contando as histórias que a ela se referem. Um conto que é um hino à leitura e ao leitor que dela faz a razão de ser da sua vida, e, assim, da lei da morte se vai libertando. Ou, porque não, uma versão moderna de “As Mil e Uma Noites”?
De Ángel Olgoso publica-se o conto intitulado “Los Palafitos”, uma história que nos fala da porosidade das fronteiras entre o mundo actual e o mundo passado. Um passeante, que deambula pela natureza, encontra um indivíduo estranho, mas amável, que o convida para a sua casa, uma construção lacustre de tempos pré-históricos, ao que ele acede, com curiosidade, espanto e prazer. História de um tempo que não se dilui no passado, mas que persiste ao longo dos tempos – o que hoje existe não anula o que já existiu. Ou seja, o tempo concebido não como uma linha recta, mas como algo circular, que nos permite voltar ao que já foi.
“Biológicas: una lectura circular” de Óscar Esquivias é um exemplo mais do fantástico que se constrói com a mesma lógica que assiste ao mundo “real”. Um jornal de província não apresenta aos seus leitores notícias “necrológicas”, mas sim “biológicas”: não noticia mortos (e respectivos elogios fúnebres dos finados), mas, sim, nascimentos e futuras carreiras dos que acabaram de vir a este mundo (carreiras fulgurantes, pejadas de êxitos e brilhantismos). O que, claro, agrada sobremaneira às famílias dos ditosos rebentos. A pergunta que o leitor poderá formular é muito simples: qual das “notícias” é mais verosímil? A da retrospecção de uma vida terminada ou a da prospecção de uma vida a despontar? Uma história deliciosa, plena de uma ironia tão subtil quão acutilante.
Que estas notas sobre os contos “perturbados” (e “perturbadores”) desta obra constitua o estímulo necessário à sua leitura, é este o meu desejo, a finalidade a que me proponho com estas linhas.
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1 comentário:
Soy Luis García Jambrina, el autor del cuento "Una cita aplazada sine die". Me ha gustado mucho la lectura que hace de mi relato. Muchas gracias. Me alegra que le haya interesado la antología. Saludos desde Salamanca.
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