domingo, 17 de outubro de 2010
A VIDA DE GENTE VULGAR
Todos os anos, Rafaelle, fascista italiano que foi voluntário na Guerra Civil de Espanha, veste-se a si e ao neto com a camisa negra e a devida farda e vai à homenagem aos fascistas italianos mortos em Espanha e percebemos que essa cerimónia anual cria uma clara crispação no resto da família.
Temos neste ritual repetido anualmente o sinal de um tempo que vai apodrecendo e desagregando os afecto e a consistência da família Canmeroni.
Ignácio Martinez de Pisón relata nos seus livros a história de pessoas normais, se é que existem pessoas normais. Não se trata de grandes naufragados no tempo ou no espaço, grandes tragédias, grandes amores.
São pessoas vulgares (talvez seja melhor a palavra “vulgares” que “normais”); pessoas vulgares com os seus vulgares problemas quotidianos, os seus pequenos-grandes dramas, os seus amores sem grandes altitudes nem grandes quedas.
Estas histórias são servidas por um gosto agudo pela reconstrução cuidadosa de tempos recentes, na multiplicação de pormenores, gestos, preocupações e limitações das personagens, que quase nos transporta e faz respirar nesses anos em que alguns de nós ainda vivemos e que quase nos faz voltar a sentir os cheiros e o ambiente dos anos 50, 60, 70, com tantas semelhanças entre Espanha e Portugal.
A história de "Dentes de Leite" roda em torno deste fascista italiano voluntário na Guerra Civil de Espanha que deixa uma mulher e uma filha anormal em Itália e se casa e constrói outra família em Espanha.
Rafaelle vê nascerem 3 filhos espanhóis, um deles também anormal. Fascista, sim, mas aparentemente não será má pessoa. Autoritário apenas, o que talvez não seja pouco., porque, como diz o autor, o fascismo é uma forma de pensamento que impregna a vida de todos os dias.
Um dia, um a um, num tempo em que o franquismo anuncia o seu final, os membros da família revoltam-se com o autoritarismo de Rafaelle e com a mentira sobre a qual foi construída a sua vida. E abandonam progressivamente um velho que vê o seu universo ideológico e familiar a apodrecer.
Neste belo romance, mais do que a sua espinha dorsal que é conduzida com um ritmo tranquilo e metódico, são os pormenores, as reacções de cada personagem, as suas contradições, os seus conflitos, as suas pequenas paixões, os seus percursos cheios de surpresas e inversões que nos conduzem na leitura que em cada página se torna mais intensa.
O que nos faz amar esta escrita é o sentido humano que o autor confere às suas personagens que se nos apresentam pessoas como qualquer um de nós. Por isso mesmo, este é daqueles livros onde a leitura também nos inscreve o leitor, a sua história, as suas inquietações, as suas dúvidas e que o faz mais intensamente personagem do “romance da sua própria vida”.
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1 comentário:
Tenho este livro na minha estante para ler...comprei-o porque me pareceu bom e por este comentário acho que acertei!
Passa pelo meu blog:
http://otempoentreosmeuslivros.blogspot.com
Boas leituras!
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