sexta-feira, 19 de novembro de 2010

IRONIA, POESIA E MORTE



Rubem Fonseca é daqueles autores que se lê de um sorvo. E é também um autor que sempre me deixou repartido. Cheia de cadáveres e mortes e matadores, a sua escrita sempre me atraiu intensamente e, simultaneamente, incomoda-me pela perversidade que transporta, pelo mergulho num mundo negro, grosseiro e mau a que me obriga.

No entanto, este romance é aquele em que menos senti essa perversidade.
Será por o autor estar a envelhecer? De alguma forma há aqui uma despedida já que o matador resolve neste livro reformar-se, embora as circunstâncias o envolvam de novo numa tremenda girândola de mortes e violêndia.



É divertidíssima a ironia do assassino profissional que é um ex-seminarista e enche o livro de citações latinas e da Bíblia. Além de ex-seminarista, o assassino é um leitor fervoroso, adora poesia, é estritamente fiel à mulher amada, com quem discute Rilke e outros poeta na cama.

Quer tudo isto dizer que o assassino não é perverso. Apenas um profissional, um homem culto que toca conforme a música, e que, neste livro, apenas pretende reformar-se e dedicar-se ao seu amor.

Há aqui alguma ou muita semelhança com os quatro livrinhos policiais que Dinis Machado escreveu nos anos 60 sob o pseudónimo de Dennis McShade.
Também o assassino dele era um profissional e gostava de ler e ouvir música clássica.

Sendo uma tremenda ironia, a questão transporta-nos para a questão do nazismo e da música clássica discutida por Luckács e Georges Steiner:

“Para ele (Luckács), os artistas, os escritores, os pensadores são responsáveis até ao fim dos tempos pelos abusos cometidos com as suas obras. Nietzsche e Holderlin seriam responsáveis pelo facto de a Wermacht e a Gestapo terem distribuído extractos das suas obras aos soldados alemães. Wagner seria responsável até ao fim dos tempos pelo facto de a sua música ter acompanhado todos os grandes SS no momento da morte. Tratava-se de um argumento falacioso, pensei eu: não existe nenhuma obra que não possa ser abusivamente usada. Lukács disse-me então que qualquer uso ou abuso inumano de uma nota que seja de Mozart era impossível.”

A literatura serve também para acender estas questões. Não sei discuti-la mas sei que é uma questão tão difícil como inquietante.

Sem comentários: