sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Máquina do Mundo Repensada





I

...

de mágico pelouro por inteiro
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro

caminho seco sob o céu escuro
de chumbo - cético entre lobo e cão -
a ver por dentro o enigma do futuro

incurioso furtou-se e o canto-chão
do seu trem-do-viver foi ruminando
pela estrada de minas sóbrio chão

- e todos: camões dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso se estampado

minto: menos drummond que ao desengano
de repintar e neutra face agora
com crenças desepultadas do imo arcano

desapeteceu: ciente estando embora
que dante no registo do íris no íris
viu - alcançando o topo e soada a hora -

...

II

...

galileo - aquele que heliocentra
o sistema - chegou depondo a terra
do seu trono senil que só sustenta

uma ciência obsoleta: o sábio a exterra
e faz descer na escala de grandeza:
ei-la - abatido o orgulho - feita perra

que lambe o hélios-sol (sem realeza)
o rastro do rei-posto (subalterna) -
e depois newton vem: a maça (reza

a lenda) cai-lhe aos pés - maga lanterna
vermelha - da alta rama e ao intelecto
pronto lhe ensina a lei (à queda interna)

da gravidade inscrita no trajecto
dos corpos mais pesados do que o ar
por amor-atração sempre que o objecto

se precipite e tombe sem cessar
- lei universal seja aos mais pequenos
seja aos maiores corpos a ordenar

...

III

com esse paradoxo encerro a glosa
que entreteci à borda do caminho
da física evoluindo: deixo a prosa

ou relação de meu descaminho
para tentar erguer-me até o mirante
de onde a gesta do cosmos descortino:

no imaginar me finjo e na gigante
lente de um telescópio o ollho colando
abismo - apto a observar o cosmorante

berçário do universo gerando:
gerando aqui o big-bang - o começo(?)
de tudo - borborigma esse ur-canto

...

camões ao bravo gama todo-audácia
a máquina do mundo fez abrir -
não desenhou a nauta desta graça

e seguiu deleitoso a descobrir
o que não pode ver a vã ciência
dos ìnferos mortais: por um zefir

pôs-se a descortinar na transparência
o ptolomaico engenho de onze esferas
na na terra tem centro e pertinência

...

finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim

para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo de outrossim
e do outronão discuto o anjo e o sexo?

O nexo o nexo o nexo o nexo e nex


A Máquina do Mundo Repensada


Um livro de grande beleza do poeta, crítico, tradutor e professor brasileiro Haroldo de Campos (1929-2003), figura central da dita "poesia concreta". O movimento, que tinha ligações com o europeu (poesia concreta/konkrete poesie/concrete poetry), surgiu no Brasil em 1956-1957, através do grupo "Noigandes", título da revista que era o seu meio de expressão. O movimento brasileiro tinha uma vertente paulistana (oriundo da cidade de São Paulo, capital do estado de São Paulo) representada por Haroldo, seu irmão Augusto de Campos e o poeta Décio Pignatari, e uma corrente "carioca" composta por Wlademir Dias Pinto, Ferreira Gullar (Prémio Camões 2010) e Ronaldo Azeredo. Razões ideológicas deram origem à secessão do grupo carioca, que subsequentemente se auto-intitulou de "Neoconcretos". A poesia concreta caracteriza-se marcadamente pelo minimalismo linguístico e pela distribuição espacial não trivial e criativa das palavras, vocábulos e fonemas. Há inúmeros exemplos de grande beleza como os que reproduzimos abaixo e que são da autoria de Haroldo e Augusto de Campos, respectivamente.





Haroldo de Campos foi também um tradutor de excelência, responsável pela tradução para o português de vertente brasileira de obras fundamentais da literatura universal como a Ilíada de Homero, a prosa de Joyce, a poesia de Mallarmé. Nos seus últimos anos almejava apresentar ao público uma tradução integral da Divina Comédia de Dante. A sua sensibilidade e criatividade de poeta eram visíveis nas suas soluções de tradução e levaram Umberto Eco a afirmar que o poeta brasileiro era o melhor dos tradutores de Dante no mundo.

A Máquina do Mundo Repensada (2000), é segundo o seu autor, um livro que resultou da leitura dialogal da Divina Comédia de Dante, dos Lusíadas de Camões, e da Máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade, para além de livros de divulgação de astronomia, cosmologia e física.

Digna de menção é também a edição brasileira (Ateliê Editorial) deste magnífico livro, na qual o prazer da linguagem é multiplicado por sugestivas ilustrações da galáxia Andrómeda e dalguns belos exemplos de nebulosas. Enfim, um livro que é uma obra de arte integral.

Orfeu B.


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