segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ferdydurke

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Os autores, com perícia e grande mestria poética, escondiam-se atrás de conceitos como Beleza, Perfeição Técnica, Lógica Interna da Obra, Férrea Consequência das Associações, ou ainda atrás da Consciência de Classes, da Luta, das Alvoradas da História e de outras ideias objectivas e anti-pantorrilheiras. Mas, desde o princípio, era evidente que estes versinhos, com a sua arte arrevesada e confrangedora pieguice, que não servem a nada e a ninguém, formavam uma linguagem secreta e complexa, e que devia haver alguma razão específica e de sobeja importância para que tantos sonhadores sofríveis compusessem aquelas extravagantes charadas. E, com efeito, após um longo tempo de reflexão, consegui verter para uma linguagem inteligível o conteúdo da seguinte estrofe:

O POEMA

Os horizontes estoiram como garrafas
a mancha verde eleva-se às nuvens
regresso à sombra dos pinheiros -
e de lá:
sorvo de um só gole

a minha primavera quotidiana.


A MINHA VERSÂO

Pantorrilhas, pantorilheiras, pantorilheiras
Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas
Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas -
Pantorrilha:
Pantorrilha, pantorrilha, pantorrilha

Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas.

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Ferdydurke


Um livro burlesco, satírico, experimental e iconoclástico do mais original escritor polaco do século XX, Witold Gombrowicz (1904 - 1969), autor de livros marcantes como "Cosmos" e "A Pornografia".

Józio é o herói desta insólita trama "Gombrowisquiana". Tendo completado trinta anos e renunciado abandonar a sua imaturidade, acaba por ser raptado pelo seu ex-professor, que após um superficial exame de latim e sobre advérbios, obriga-o a voltar aos bancos da escola dum liceu conhecido pela excelência dos seus professores e pelo modernismo dos seus métodos. O absurdo da circunstância exige da sanidade do protagonista uma contínua adaptação ao surrealismo das situações que se sucedem umas às outras.

Mas em reacção, o tornado infantil Józio, disseca todo o processo colocando a nu o ridículo dos condicionamentos subjacentes à norma social relativamente à vida quotidiana, às relações de classes, às obras-de-arte, à etiqueta, à moralidade, à sexualidade e às mentiras culturais engendradas pela ideologia e pela inteligentsia de serviço. E tudo isto numa linguagem satírica de grande originalidade, que cria situações absurdas e hilariantes, que descreve os personagens arquetípicos com um escárnio feroz e reduz ao ridículo as atitudes ditas modernas (hoje seriam pós-modernas) e os tiques mentais dos agentes da cultura oficial em todas as suas vertentes.

Uma leitura refrescante e libertadora.

Também digna de nota é a qualidade extraordinária da tradução levada a cabo por Maja Marek e Júlio Carmo Gomes directamente do polaco.

Orfeu B.



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