... O verbo "desenvolver", no entanto, possui um duplo sentido. A flor é o resultado de um desenvolvimento diferente do barco de papel que se ensina a fazer às crianças e se desdobra numa folha lisa. Este segundo desenvolvimento é o que se adequa à parábola, ao prazer do leitor em desdobrá-la até lhe encontrar um significado liso. Mas as parábolas de Kafka desenvolvem-se no primeiro sentido, no sentido que culmina na flor. Pois, os seus resultados tem afinidades com a poesia ...
Como Lao-Tsé, também Kafka era um autor de parábolas, mas não era um fundador de religiões.
Walter Benjamin
Seria difícil encontrar um autor moderno que não esteja ligado directa ou indirectamente ao legado de Kafka. O crítico literário, filósofo, sociólogo e tradutor Walter Benjamin (1882 - 1940) sabia-o muito bem e não resistiu à sedução de mergulhar no enigma da obra do autor de " O Processo". Através dum pequeno ensaio, escrito em 1934, e publicado pela Editora Hiena em português em 1994, Benjamin dá-nos a oportunidade de vislumbrar as múltiplas e surpreendentes relações místicas, religiosas, talmúdicas, literárias, psicoanalíticas, etc, que a obra de Kafka suscita a uma mente brilhante e ecléctica.
O opúsculo começa com o truque brilhante de descrever uma situação ocorrida dois séculos antes, segundo a qual a depressão do tzar Potemkin emperra toda a máquina burocrática que necessita da sua assinatura em inúmeros documentos pendentes. Ansioso por agradar aos seus superiores, o humilde copista Chuvalkin irrompe no quarto do imperador com os documentos por assinar e, arranca deste as assinaturas desejadas. Porém para a consternação dos ministros e autoridades, em todos os documentos figurava o nome de Chuvalkin! Segundo Benjamin, a obra de Kafka, como a história de Potemkin, gira em torno de equívocos dessa natureza, de condenações presumidas, de transformações e nomeações incompreensíveis que seguem o seu curso absurdo, apesar da irretorquível lógica interna das acções que desencadeiam.
Para Benjamin, o mundo de Kafka é um Teatro Universal. Para Kafka o homem encontra-se naturalmente em cena. A prova sendo que todos são aceites no teatro natural de Oklahoma, texto central na obra de Kafka, e no qual é impossível se perceber que critério rege as admissões. No teatro natural de Oklahoma à aptidão declamatória não se dá qualquer importância; só se pede aos candidatos que representem o papel de si próprios ... E nas fábulas de Kafka, os animais descritos ganham ao longo do texto uma inevitável humanidade. E reciprocamente, é a solidão da condição humana que lhes empresta a condição animal. Assim, Gregor Samsa não acorda transformado num insecto, mas desperta para um estado de humanidade pura, destilada ao ponto de deixar desnuda a solidão fundamental da existência e a sua inerente inadequação às convenções.
Porque a questão fundamental é formulada no "O Castelo", sendo também a essa essência de"O Processo":
"Acaso um funcionário isolado tem o direito de perdoar? Pode-se admitir que ao colectivo das autoridades reunidas seja permitido tomar decisões, mas mesmo aqui há que distinguir: podem condenar, mas não têm poderes para perdoar".
Mas certamente, não serão todos tocados por este tipo de subtilezas e para exemplifica-lo permito-me citar um breve texto Umberto Eco intitulado , "Lamentamos não poder publicar o seu livro ... ":
"Franz Kafka. O Processo
Este livrinho não é mau de todo. Género policial, com passagens tipo Hitchcook: o assassínio final, por exemplo, terá os seus apreciadores.
Mas dir-se-ia que o autor o escreveu sob ameaça da censura. Como explicar aquelas vagas alusões, a omissão do nome das pessoas e lugares? E porque motivo o protagonista é levado a tribunal? Se especificasse melhor essas questões, enquadrando a história num cenário mais concreto, fornecendo factos, principalmente factos, o enredo ganharia em clareza e o suspense em eficácia.
Estes escritores novatos julgam criar "poesia" ao dizer "homem", em vez de "o Sr. Fulano de tal, em tal lugar, a tal hora" ... Em suma, se for possível dar uma volta ao texto, interessa. Caso contrário, aconselho recusá-lo."
Umberto Eco especula que os profissionais que assistem os editores também não aconselhariam a publicação da Bíblia, da Odisséia, da Divina Comédia, de Dom Quixote, de À Procura do Tempo Perdido ...
Orfeu B.
Sem comentários:
Enviar um comentário