quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

«Não abras a porta, / se for o sublime diz que não estou, / já temos palavras de mais, sentimentos demais.» Manuel António Pina.

Reunir Poesia 

No universo da literatura a poesia, dizem, é sempre outra coisa. De facto é. Pessoal, boa, má, funciona, não funciona. É para uso pessoal de quem escreve e de quem lê. Há quem nunca a descubra, quem não se sinta por ela tocado. Não sentimos todos a falta das mesmas coisas. Mas algures dentro de um livro de poesia há janelas, emoções, construções mentais. Mais que o dito é a arquitectura das palavras que conta. A Poesia é mais música que qualquer outra arte. Por isso mesmo que não abra mão do silêncio pede voz. E é como o amor, exige sempre dois envolvidos no mesmo ritmo e no mesmo tempo; por vezes toca mais a alma, outras o corpo e acontece em casos raros extraordinários arrebatar ambos, na singular conjugação das estrelas que é a arte dos poetas.
Ousar falar de poesia é um risco. Poucos entendem o parar a vida para nos encantarmos por um poema que nos rasga uma janela na escuridão de um quarto escuro.
A poesia existe para que alguém respire acima da linha de água. Mesmo que para isso tenha sido preciso ao poeta mergulhar nas mais obscuras profundezas dos pântanos ou ter a ventura de voar sobre as mais altas nuvens.
Poesia reunida, poesia toda. Poesia apenas. Uma vida escrita, vista e revista nos poemas que são de novo embrulhados para oferta aos saudosistas ou aos que a descobrem agora, pela vez primeira vez. Um livro de poesia reunida é um balanço de vida, uma espécie de biografia holística. Neste ano que agora termina editaram-se algumas.




Todas as Palavras
poesia reunida
Manuel António Pina
Assírio e Alvim, 2012

Todas as palavras de Manuel António Pina já foram ditas e escritas. Já não resta sequer um sábio fechado na sua biblioteca, apenas a biblioteca, os livros, as páginas, os poemas.

A biblioteca
"O que não pode ser dito/guarda um silêncio/feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//quando já a incerteza/ e o medo se consomem/em metros alexandrinos./Na biblioteca, em cada livro,// em cada página sobre si/recolhida, às horas mortas em que/a casa se recolheu também/virada para o lado de dentro,//as palavras dormem talvez,/sílaba a sílaba,/o sono cego que dormiram as coisas/antes da chegada dos deuses.//Aí, onde não alcançam nem o poeta/nem a leitura,/o poema está só./E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.//” 
Manuel António Pina





Poesia Reunida
Maria do rosário Pedreira
Quetzal, 2012

Gostei muito de ouvir a Maria do Rosário Pedreira aquando da apresentação deste livro na Livraria Arquivo, em Leiria. Recomendo a todos. Esta Poesia Reunida aguarda leitura detalhada e vai durar Verões e Invernos. Os seus poemas são sempre de amor, o sentimento que melhor justifica a vida mesmo quando antecipa a morte, como sombra que permite atender a luz da vida, são como se tecidos sobre o corpo, uma segunda pele, vivem como árvores resistindo e mudando lenta e amorosamente no passar das estações.


“Vamos ser velhos ao sol nos degraus/da casa; abrir a porta empenada de/tantos invernos e ver o frio soçobrar//no carvão das ruas; espreitar a horta/que o vizinho anda a tricotar e o vento/lhe desmancha de pirraça; deixar a//chaleira negra em redor do fogão para/um chá que nunca sabemos quando/será — porque a vida dos velhos é curta,/mas imensa; dizer as mesmas coisas/muitas vezes por sermos velhos e por/
serem verdade. Eu não quero ser velha//sozinha, mesmo ao sol, nem quero que/sejas velho com mais ninguém. Vamos/ser velhos juntos nos degraus da casa —// se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não/atravesses a rua por uma sombra amiga,/ trago-te o chá e um chapéu quando voltar.//” 
Maria do Rosário Pedreira





Poesia
José Fanha
Lápis de Memórias, 2012


O livro de Poesia de José Fanha é uma edição da editora Lápis de Memórias, de Coimbra. É de um campanheiro destas viagens leitoras mas não vou falar sobre ele,  ainda aguardo com expectativa a sua integral leitura. Apresentado há dias numa livraria de Coimbra que tem o mesmo nome da editora, Lápis de Memórias, traz muitos dos poemas que todos conhecem mas faziam parte de edições há muito tempo esgotadas e também muitos inéditos. Gosto muito do que conheço. A sua poesia é uma voz de razão, emoção e corpo inteiro. Cinco centenas de páginas que percorrem quarenta anos de escrita poética e de vida que a partir de agora vão andar por aí.

A Metáfora
"Encontro o Mestre e digo-lhe que há poetas/que recusam a metáfora/ e o Mestre sorri./A metáfora é apenas a metáfora/diz ele/e não vale a pena ser a favor nem contra a metáfora/nem a favor nem contra seja o que for.//As coisas são e não são/à margem/dos poetas com assento/em casas de comércio/diz o Mestre/enquanto almoça.//A realidade vale exactamente o que vale o nosso olhar./A realidade é um peixe/o peixe nosso de cada poema./E o poeta é uma criança que segue pelos caminhos/ com bolas etéreas/a subir no ar.//O poeta é um menino com olhos/de menino e uma dor/ muito funda no seu peito de menino./O poeta atravessa os pátios da infância/ e vai feliz//dizendo  que as breves metáforas que lança ao ar/são apenas planetas de sabão a explodir/sucessivamente//sobre a cabeça do mundo.// 
José Fanha


Arte Nenhuma

Carlos Poças Falcão
Opera Omnia, 2012

E por fim este “Arte Nenhuma”, também recente, que encontrei na Centésima Página, em Braga, uma livraria onde os livros de poesia têm um espaço maior que o residual habitual em outros espaços e um tempo de existir para lá do vertiginoso chega-logo-desaparece das livrarias. 
É uma edição da OperaOmnia, uma editora de Guimarães, onde vive o seu autor, Carlos Poças Falcão, que conheci num tempo já longínquo, numa época em que Guimarães estava longe de ser capital mas era cidade de cultura. Ao folhear o livro relembrei o Convívio, acho que ainda resiste no Toural, os primeiros passos do festival de Jazz… E o que nenhum de nós sabia, há vinte e cinco anos que é o tempo deste livro, o que a vida traria a uns e outros. Muito menos que a morte, coisa estranha e distante, atropelaria amigos comuns. 
Refiro o conhecimento factual do autor pois me faria, em qualquer circunstância reparar num livro seu. Mas não me obrigaria a falar dele, faço-o porque me surpreendeu, sem espanto, a solidez do seu percurso.
Começou a escrever em 1987 com “Número Perfeito”, foi professor depois de largar uma breve e excruciante experiência na advogacia, abraçou um projecto editorial, a Pedra Formosa, e a poesia foi acontecendo. Vinte e cinco anos depois encontro-a mais sofrida mas menos angulosa. O tempo adoçou-o embora continue a preferir o crescimento dos cristais como metáfora do enovelamento dos afectos. Desde a saída do último livro que li dele, “Invisivel simples”, em 1988, que não nos cruzamos. Este livro foi um reencontro. Tal como o esperado as palavras são buriladas mas não é apenas um exercício de palavras há pensamento, reflexão. Não é um livro fácil, nem áspero, é sério e profundo. Creio que nenhum exigente leitor de poesia sairá defraudado.

Arte Nenhuma
"Por arte nenhuma, murmuração, momentos/de não saber cair, o poeta é quase nada./Atravessa a rua, sobe a escada, ao abrir a porta/está mudado: é um batimento estranho,/o coração antigo, toda a aprendizagem/semelhante a uma ruína. Espera ficar árido/até apanhar luz, assim como um deserto,/um poço para a voz, a espelhar ao fundo./Depois abre a janela, está vazio, pronto/a mudar de vez: porque esse é o poema,/a respiração a negro na frequência exacta/de uma espécie de onda, alísea, não criada.//”
                                                                                                                               

Os poetas são resistentes marginais mesmo quando estão por dentro. São pessoas desconfortadas. Podem louvar ou odiar a humanidade, ser laureados ou proscritos. Amam uma pessoa ou muitas, cada uma na sua singularidade de ser e género. Mas num lugar qualquer um poeta luta sozinho com o branco onde inscreve as palavras por razões e necessidades que nem quem os ama pode atender.
No “Pequeno livro azul”, dedicado a sua mulher, a Mizé, que morreu no ano passado, dá a sua voz à dela, afunda-se na dor de quem sofre, omitindo a sua própria ao ver morrer a mulher amada. Vemos o pequeno e limitado mundo do quarto do hospital pelos olhos dela, de forma crua e delicada faz-nos sentir impossibilidade, dor,  lucidez,  abandono e fúria a agarrar a vida. O sofrimento na sua esperança e desesperança. Não é um capítulo para mentes sensíveis. A dor cada uma a toma como é capaz de melhor a suportar: a breves tragos ou toda de uma vez.

“Olhar o tecto/respirar baixinho/Estar nas mãos de Deus//”
(…)
“o corpo, pobre corpo/esta choupana/e uma luz lá dentro/que o ama/que o ama//”

Arte Nenhuma é uma antologia encorpada na sua essência, nos sentimentos que guarda nos duelos mentais que constroem os poemas. Sendo que os livros são também o que deles dizemos, falta-me a mim arte para falar dele, dela, a poesia, que é melhor lida que em tentativa explicada ou justificada. Mas eu posso dizer o que me aprouver neste canto, humilde espaço de leitores (in)comuns.
O diálogo com deus é um diálogo aberto no qual podemos retomar as perguntas e quem sabe deus nos responda perguntas para buscarmos outras e quem sabe um dia chegar a algumas poucas respostas.

(…)
“Sei que não devo perguntar. Mas gostaria de entender porque tem de ser assim. Nada/ devo perguntar, pois a resposta é sempre uma outra torrente de sinais- e o coração/ confunde-se e a inteligência fica dividida.//”
(…)
 “Deus dava uma pancada na coxa com a Sua larga mão./ E eu ficava sem saber o que fazer. Para que são estes sinais/Intensos? Apetecia-me chorar, pois não estava á altura das/ revelações. E desejava estancar o tempo, que é por onde/Deus lança os seus sinais//”

Há, desde o início com “O Número Perfeito” uma força no mistério telúrico das palavras que se prolonga e acentua nas criações mais recentes.

“As pedras têm uma forma própria de ir cavando a terra,/à força de humidade, aconchegando as larvas e pesando,/pesando sempre. Um dia alguém levanta uma e há um rede-/moinho nesse nicho que lentamente se afundava.//”
(…)
“Assim também as casas. Se alguém levanta uma, pode/encontrar ossadas, ou a antiga mancha das adegas e os ratos/ficarão assustados pela súbita ausência de peso.//”

E há a arte de fazer haikus, com o rigor de um perfumista que se nota a cada gota, no Coração Alcantilado.

“Não te envaideças tanto, ó flor!/Olha à tua volta:/Primavera!//”
(…)
“Exige todo o sol/e o mês de Maio longo/uma cereja!//”

Na poesia do Poças Falcão o lugar dos afectos tem forma despojada mas profunda. Há uma tentativa de busca de perenidade nos fenómenos cíclicos da natureza, na lentidão geológica das pedras. Uma contenção de palavras que nos leva a perguntar mais uma vez e outra dentro de cada um. No princípio parecia regida por leis mais abstractas e geométricas agora persegue outras mais flexíveis que regem o ser. Há agora um lado mais concreto a par da abstracção. Há uma lamentação nas coisas imperfeitas, como se amassem, como se recordassem. Tudo pede um deus e o encontro com ele é um exercício solitário de confronto com um criador sábio que se diverte como um pai a deixar que o filho descubra o caminho, sabendo-o sempre em aberto na descoberta. Há na imperfeição maceração de  terra e criaturas, alimento para a vida, medições de temperaturas…Auscultação dos arenitos, restos de chuva, erosões gravadas. A busca na natureza, nos elementos, nos tempos geológicos da segurança que nos foge na nossa humanidade.

(…)Somos líquidos/amamos a fragmentação, a incansável/desordem da matéria. Com a pequena voz /enfrentamos o tempo, com a brancura/de uma subtil lenta paixão. Ao unirmos/separamos. Intuímos uma funda duração/um denso envolvimento, uma gravitação.//”

Vinte e cinco anos. “Arte Nenhuma”, o próprio título metáfora da própria poesia. Arte Nenhuma a ela se compara.

“Agora outra vez a caminhar/Atraso de propósito o bater de vários ritmos/Não estou contra/não vou contra/apenas subo um pouco/ e desacelero/Assim vou desdobrando/um fio de oração sobre a cidade/Depois dos triunfos/e das pequenas mortes/é só pela humildade (a terra da alegria)/que posso regressar//” 

No ano que se segue todos vão fazer listas rigorosas de coisas úteis versus outras ainda mais rigorosas de coisas dispensáveis. Acrescentem a essa primeira lista, por favor, um ou outro livro de poesia. Antes isso que medicamentos, mesmo que esses contribuam mais para a economia, para a reabilitação do mercado. Antes a poesia. Os medicamentos têm contra-indicações e a economia, caros leitores, foi um brinquedo na mão de iletrados que não se deram conta a tempo que eram humanos os números das suas equações. Antes a poesia que é ela própria a expressão máxima de nossa humanidade. Uma luz segura na noite que atravessamos, iluminando cada um segundo o seu caminho. Um mundo de perguntas, de buscas e de lutas. Não há sombras a não ser nos nossos olhos. Dizer tanto do poder de um livro pode parecer excessivo. Mas por vezes um singular poema tem esse poder. A poesia que se publica bastante, vende pouco e muito se perde por aí nunca será um fenómeno de massas. Nunca pesará no PIB. É inútil e absolutamente necessária para tecer os dias.

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