quinta-feira, 20 de março de 2014
A ESCRITA ENCANTATÓRIA DE ISABELLE EBERHARDT
É sob o efeito da escrita encantatória de Isabelle Eberhardt (1877-1904) que escrevo estas linhas, embora esteja ciente da dificuldade de transmitir a emoção que as suas “Histórias da Areia” (editadas por Sistema Solar) me provocaram. Isabelle é uma suíça de língua francesa, descendente de russos que se fixaram na região de Genebra. Ela e sua mãe, sedentas de uma liberdade que não encontravam na Europa, partem para Argel, onde fixam residência. Aníbal Fernandes (AF), em prefácio à obra, fornece-nos alguns elementos necessários ao enquadramento da vida e da obra de Isabelle na antiga colónia francesa da Argélia. Vida aventurosa, em que ela se veste com as roupagens de um beduíno, o que lhe permite uma liberdade de movimentos só acessível aos homens. Adquire um nome árabe, domina a língua árabe, converte-se ao islamismo. Gradualmente vai se transformando num ser livre. Livre em todos os aspectos, no amor inclusivamente: quando um homem a atrai, entrega-se total, ardentemente. Apaixonada pelo deserto, percorre-o permanentemente. E, desta peregrinação, nascem muitos dos seus contos, eivados de luz, de cor, de fogo – de poesia. Escrita no feminino, que, na perspectiva europeia, se poderá enquadrar no que ficou conhecido pela designação genérica de movimento modernista (que, em Portugal, teve, em minha opinião, a sua expressão mais alta em Mário de Sá-Carneiro). Do prefácio de Aníbal Fernandes, cito alguns textos de Isabelle, que nos poderão fornecer pistas sobre a sua vida e obra. Assim, ao referir-se à sua vida de vagabundagem, diz: “Uma vez mais a vida beduína fácil, livre, embaladora, tomou conta de mim para me inebriar e amolecer.” E, ao falar da sua posição perante a sociedade, esclarece-nos: “Não sou política nem agente de nenhum partido, pois acho que todos de igual forma se enganam. Sou apenas uma extravagante, uma sonhadora com o desejo de viver longe do mundo, de viver uma vida livre e nómada para contar o que vê e à frente do triste esplendor do Sara conhecer, talvez, o melancólico e enfeitiçado estremecimento.” Aníbal Fernandes acrescenta mais adiante: “Naquela vida agitada existia um escritor incansável, espalhado por diários, por impressões de viagem, pensamentos e histórias. ‘Escrevo porque gosto de progredir na caminhada da criação literária’, deixou registado num dos seus papéis: ‘escrevo como amo, porque talvez seja este o meu destino. É o meu único e verdadeiro consolo’.” E continua Aníbal Fernandes: “(...) morte que nunca a assustou, a benfazeja, a que inspira aos muçulmanos esta saudação: «Faça-te Deus morrer jovem.» Ela própria reconhece-o nesta frase: ‘A morte sempre me surgiu com a forma atraente da sua imensa melancolia.’” Em 1904, com a idade de vinte e sete anos, morre Isabelle Eberhardt, esmagada pelos escombros da sua casa de argila, que se desmoronou durante uma tempestade. Deve-se ao General Lyautey, governador francês da colónia, a salvaguarda dos seus manuscritos, tal era a sua admiração por esta sua opositora, bela, pura, independente. Manuscritos e histórias que publicou em jornais argelinos, constituem o seu espólio, que só muito mais tarde foi valorizado e publicado. A título de exemplo, transcrevo a parte final do conto “O Paraíso das Águas”: “O dia de fogo apagava-se na irradiação da imensa planície e das colinas. Para lá dos sebkha de sal as tamarineiras acenderam-se como grandes velas negras. De novo o mueddine clamava o seu apelo melancólico. O Vagabundo estava agora completamente acordado. Os olhos com pálpebras magoadas e pesadas abriam-se com avidez ao esplendor da noite. De repente uma tristeza infinita desceu-lhe ao coração. Foi invadido por saudades infantis. Estava sozinho, sozinho neste canto da terra marroquina, e sozinho em todo o lado onde tinha vivido, em todo o lado para onde alguma vez fosse. Não tinha pátria, não tinha lar, não tinha família nem sequer amigos. Passara como um estranho e um intruso, despertando apenas a reprovação e o afastamento. Naquela hora sofria longe de todo o auxílio, entre os homens que assistem impassíveis à ruína de tudo que os rodeia e cruzam os braços perante a morte, a doença, dizendo: Mektub. Em nenhum ponto da terra havia um ser humano a pensar nele, a sofrer com o seu sofrimento. O coração do Vagabundo apertou-se terrivelmente, e dos olhos correram-lhe lágrimas. Mas mais lúcido, acalmado, sentiu desprezo pela sua fraqueza e sorriu. Se estava só, não era por tê-lo desejado nas horas conscientes em que o seu pensamento se elevava acima dos sentimentalismos do coração e da carne, de igual modo enfermos? Estar só era estar livre, e a liberdade era a única felicidade acessível à natureza do Vagabundo. Disse então a si próprio que a sua solidão era um bem; e à sua alma desceu uma grande paz melancólica e suave. Um sopro quente levantou-se na direcção do Oeste, um sopro de febre e angústia. A já cansada cabeça do Vagabundo voltou a cair no travesseiro. O seu corpo aniquilava-se num torpor quase voluptuoso. Os seus membros ficavam leves, moles, como se tivesse a pouco e pouco deixado de existir. A noite de Verão escura e estrelada desceu no deserto. O espírito do Vagabundo abandonou o corpo e levantou voo para sempre, rumo aos jardins encantados e às grandes e azulíneas lagoas do Paraíso das Águas. Nota: Este conto é a adaptação de dois textos que Isabelle Eberhardt escreveu sobre a sua própria experiência da febre, aqui transferidos para a personagem do Vagabundo. Na sua primeira versão, a voz do narrador é a do próprio autor. (A.F.)” Com este texto, não pretendo esgotar a beleza, a subtileza, a sensualidade da escrita de Isabelle Eberhardt, mas apenas chamar a atenção para algo que é essencial na sua vida conturbada: a escrita “talvez seja o meu destino. E o meu único verdadeiro consolo.”
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