terça-feira, 22 de abril de 2014

O Ritual


Uma das mais interessantes experiências artísticas é aquela onde uma forma de expressão artística utiliza métodos e a linguagem duma outra. Refiro-me muito particularmente, ao caso do cinema, quando este recua às suas origens mais directas e utiliza o ritmo e a temporalidade do discurso teatral aquando do tratamento de uma ideia que é primordialmente cinematográfica. Este cruzar de fronteiras é muito mais raro do que o seu inverso, especialmente quando não há como elo de ligação um robusto e carismático texto literário.

Há inúmeros exemplos, algo recentes que são dignos de nota; recordo-me imediatamente de Próspero de Peter Greenway de 1991, Dogville de Lars von Trier de 2003, entre muitos outros. Mas suponho que embora não sendo Ingmar Bergman o encenador que mais frequentemente cultivou este recurso, foi possivelmente o que o fez com maior impacto e eficiência artística. E neste contexto, O Ritual, é talvez o mais paradigmático da sua cinematografia. 

Inserido na retrospectiva do encenador em Fevereiro-Março de 2014 no teatro do Campo Alegre no Porto, este filme notável de 1969, é perfeitamente consistente com a extraordinária sensibilidade artística que associamos ao encenador de Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, Lágrimas e Suspiros, Fanny e Alexander para mencionar aqueles filmes que são incontestavelmente considerados obras primas da cinematografia universal. 

Restrito à encenação de quatro actores (o quinto é o próprio encenador que aparece fugazmente numa cena cheia de penumbras e declama umas breves linhas de texto), O Ritual é um filme intenso e sinuoso com uma forte componente onírica e uma linguagem teatral de inspiração clássica. Quase que podemos reconhecer as componentes do discurso poético-teatral descrito na Poética de Aristóteles: mimesis (representação); catharsis (purga e purificação); peripeteia (oposição); anagnorisis (identificação); hamartia (o erro trágico); mythos (enredo); ethos (carácter); dianoia (tema); etc. 

De facto, este magnífico exercício cinematográfico opõe uma trupe de actores, composta por um complexo casal e um terceiro elemento mercurioso, a um inspector conservador incumbido de averiguar a natureza obscena de uma representação do grupo. Aparentemente, a tarefa é extremamente simples, dado o comportamento acintoso e amoral dos actores. A solução ascética duma reprimenda e uma multa parece ser o desenlace lógico, porém Bergman oferece-nos, em vez da racionalidade burocrática, uma inesperada tragédia: o inspector acaba por morrer, vítima de uma paragem cardíaca, consumido pela volúpia propiciada por uma representação privada que lhe é oferecida pela trupe.        

E no microcosmo deste drama exemplar, Bergman opõe, com a maestria da sua inteligência artística, o ideal da arte à banalidade ordem burocrática assim como, a humanidade artística (com as suas  fraquezas e virtudes) à hipocrisia boçal da moral burguesa. 

A conclusão é que O Ritual faz necessariamente parte do grupo das grandes obras de Bergman. 

Orfeu B.


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