O senhor Soares percorre as áleas do Jardim da Estrela, o qual se esconde como um fantasma de um parque antigo, dos séculos antes do descontentamento da alma. E enquanto os cisnes deslizam no espelho de água o senhor Soares, contemplando-os com olhos semifechados por trás das lentes, magica numa quermesse em que participam columbinas e pierrots e arlequins. Observa a criança que apanhou um tabefe da mãe por ter desejado mais um caramelo, e compadece-se do choro desabalado, vendo nele a metáfora da condição de todos nós, ambiciosos de uma cor inatingível, e do paladar que lhe corresponde. O senhor Soares repara agora no soldado que passa o braço nos ombros da criadita no banco que fica à beira do canteiro de gladíolos, e inventa o teor das cartas que os dois se trocam ao longo das semanas, e nas quais se tratam por “meu adorado amor”, “minha vida”, e “riqueza do meu coração”. O senhor Soares leva o sapatos ligeiramente cambados, a dobra das calças surradas pelo pó, e o cabelo ao léu, mal lambido pela brilhantina. Aproxima-se de uma rapariga de expressão azougada, uma dessas moreninhas que gostam de exteriorizar uma certa malícia, simbolizada pela vírgula de penteado que se lhes cola à testa.
E tudo isto se mistura na minha visão, não sei bem porquê, com um romance ancestral, em cujas linhas intervêm Hamlet e Ofélia, heróis do grande Shakespeare, que só conheço de ouvir falar. A mulher, tendo escorraçado o cão para o quintal, e dado de comer às galinhas e rolas, passaria agora na cozinha, remexendo nas cafeteiras do pequeno almoço, e gemendo por causa das artroses que pela manhã, e enquanto os joelhos se lhe não desprendem, a afligem mais do que nunca. O senhor Soares dissolve-se na luz do Jardim da Estrela, passeado a par da jovem que o esperava, mas de atenção posta mais nos carreirinhos das formigas do que nas pupilas negras daquela que palra sem cessar, acho eu que o metro da renda de Malines, ou sobre a audácia dos trapezistas do Circo Price que veio uma vez a Lisboa. E é então que principio a resvalar em definitivo para o sono, quando a claridade me entra pelas frinchas da persiana, e o senhor Soares se dirige a um país muito distante que no meu torpor se chama “Mar Português”. Atrás dele segue uma fosca multidão, e a primeira individualidade que nela distingo é aquele famoso doutor Reis, marchando muito erecto, com um livro aberto na mão direita, e um lápis em riste na mão esquerda, e que vai contando as sílabas de um verso, ou dividindo as orações de uma estrofe.
Mário Cláudio
Numa célebre carta a Casais Monteiro, Fernando Pessoa define o autor do Livro do Desassossego: «O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade.»
Há muito, eu acredito que há uma infinidade de Livros do Desassossego. As razões que me levam a pensar desta forma foram expostas neste mesmo blog num breve texto. Mas se esta multiplicidade pode sugerir uma diluição do estilo do autor e uma dificuldade acrescida na fixação da sua unicidade, a leitura desta deliciosa novela convenceu-me que, depois da fonte, o Livro do Desassossego, o texto de Mário Cláudio é o que melhor situa o semi-heterónimo de Fernando Pessoa no contexto da cultura portuguesa. A novela de Mário Cláudio é uma radiografia da alma portuguesa, nas suas fraquezas e na sua grandeza. Mário Cláudio captura, com grande argúcia, as minudências e a essência dos tempos de Fernando Pessoa, demonstrando, por contraste, a singularidade da sua obra face às limitações materiais e intelectuais da sua vida quotidiana.
Fundamentando-se no Livro do Desassossego, Mário Cláudio recria o guarda-livros Bernardo Soares através de um engenhoso artifício. Utiliza como narrador o moço de escritório - António da Silva Felício — um jovem recém chegado da província que se emprega, na função de aprendiz de caixeiro de escritório, no armazém de venda a retalho situado na Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é tradutor. Mas na verdade, também o artifício esconde uma surpresa final: o autor do texto que exara os tempos de escritório de António da Silva Felício, é na verdade um escritor contratado, que não se coíbe de imprimir o seu estilo e as suas convicções à narrativa do seu contratante!
Boa Noite, Senhor Soares, é uma novela de grande densidade humana e de grande mestria literária. Nela o leitor encontrará, para além da prazeirosa leitura, uma reinvenção extraordinária da vida criativa de um dos mais enigmáticos autores da língua portuguesa.
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