O reino de Larbidel situava-se antigamente no sopé da imponente montanha da Hirgonquiu. Os geógrafos, pouco habilitados para fazer comparações deste género, diziam que o reino se assemelhava a uma bola de futebol prestes a levar um valente pontapé. E foi isso mesmo que aconteceu, já que a montanha pontapeou o reino para dentro do oceano e nunca mais se ouviu falar de tal sítio.
Um dia, uma jovem princesa subiu à montanha para apanhar ovos de cabra, cujas claras são excelentes para fazer desaparecer sardas. Ovos de cabra! — Sim: os naturalistas afirmam que todos os seres são concebidos em ovos. As cabras de Hirgonquiu podiam muito bem ser ovíparas e pôr ovos para chocarem ao sol. Esta é a minha suposição, independentemente de acreditar nela ou não. Estou aliás, disposto a contestar e a insultar qualquer pessoa que se oponha à minha hipótese. Seria o cúmulo, se homens eruditos fossem obrigados a acreditar naquilo que afirmam!
Horace Walpole
Há autores cuja característica fundamental é a de serem singulares e de terem uma clarividência surpreendentemente intemporal. É indubitavelmente o caso de Walpole, que através desta breve colectânea de seis contos “hieroglíficos”, nos regala com deliciosas distorções, com narrativas absurdas e factos surreais, todos estes invariavelmente impregnados de um humor “non sense”, quinta-essencialmente britânico.
Escritos antes de 1785, os textos desta rica colectânea só foram publicados depois da morte do autor, em 1797. Mas para além da sua precocidade histórica, os textos de Walpole são de uma contemporaneidade desconcertante. Poder-se-ia argumentar que esta actualidade é fundamentalmente devida à constância do absurdo nas convenções sociais e das situações políticas, mas, na minha opinião, é também muito devida à imaginação delirante e a genialidade do seu autor.
Os cenários destes contos são tão variados como a fertilidade imaginativa de Walpole e passam pelas Arábias, China, Espanha, Irlanda e Veneza, e foram, apesar de subversivos com relação ao estilo e aos conteúdos literários do seu tempo, um grande sucesso. Outra peculiaridade desta reunião de textos e que só foram publicados postumamente, pois em vida o autor imprimiu apenas sete cópias para a leitura de amigos (apesar da intenção declarada no prefácio de publicar 100 mil cópias!).
Horace Walpole, que nasceu em 1717, teve uma longa vida e, como o pai, Robert Walpole, que foi primeiro-ministro de Inglaterra, seguiu a carreira política. Porém, foi através da literatura que se imortalizou. O seu O Castelo de Otranto (que eu não li), publicado em 1764, é considerado o marco inicial do movimento gótico europeu. Descrito pelos críticos como um “romance irracional”, a associação dos textos de Walpole aos do surrealismo e aos da modernidade literária é inevitável. A obra de Walpole compreende naturalmente, cartas e discursos políticos, mas também ensaios sobre jardinagem, e previsivelmente, histórias anedóticas, artigos polémicos, memórias forjadas, escritos que suscitaram invariavelmente numerosas polémicas.
Os Contos hieroglíficos são uma preciosidade literária e proporcionam uma leitura extremamente divertida e agradável.
Orfeu B.
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