terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Livros do Desassossego

“Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”
“Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci.”
Composto por Bernardo Soares,
ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

Experiências radicais levadas a cabo por Cortázar e, Calvino entre outros, nas décadas de 1960 e 1970, procuraram romper com o dogma fundamental da prosa literária, a linearidade narrativa. Experiências semelhantes já tinham sido testadas pelos surrealistas. Mas a novidade introduzida por Cortázar e Calvino foi a infiltração de elementos aleatórios, através dos quais era dada ao leitor a possibilidade de encontrar nas distintas ordenações dos textos apresentados a narrativa que lhe mais aprouvesse. A unicidade do texto deu lugar à multiplicidade de hipóteses construtivas. À imaginação de cada leitor era dada a oportunidade de participar no processo criativo. Era-lhe facultada a hipótese de inúmeras revisitações à matrix dos textos básicos que podiam então ser justapostos de formas distintas dando origem aos mais variados livros.
Esta perspectiva leva-nos a especular que só a ruptura da linearidade narrativa poderia mitigar o desassossego que a ordenação dos textos que compoem o Livro do Desassossego (L. do D.) tem causado nos especialistas.
Pela sua natureza confessional e de registo de impressões, sensações vividas e sobretudo sonhadas, o L. do D. não permite qualquer ordenação definitiva. O próprio Pessoa, referindo-se a esta obra em cartas a Casais Monteiro, Sá-Carneiro e outros, sugeria que a ordenação dos textos era um dos aspectos mais problemáticos na preparação do livro.
Na sua primeira edição em 1982 a organização dos textos foi elaborada por Jacinto do Prado Coelho, que muito elegantemente alerta para a subjectividade da ordenação proposta, deixando claro que a sua era uma das leituras possíveis do L. do D. Mas o próprio chega a referir uma possível apresentação desordenada dos fragmentos, embora esta, na sua opinião, só seria acessível a um número restrito de leitores. Rejeitando a ordenação cronológica, dado que uma grande parte dos fragmentos não se encontravam datados ou não eram datáveis, propôs uma ordenação por “zonas de relativa homogeneidade” temática. A mais recente edição do L. do D., organizada por Richard Zenith parece seguir a mesma lógica, com especial zelo contudo, na origem dos fragmentos a incluir e a excluir.
Assim, as edições disponíveis do L. do D. não são só apresentações de mais um mistério Pessoano, desta feita sob a forma do semi-heterónimo Bernardo Soares, mas também um repto aos especialistas para que proponham leituras alternativas.
Longe de pretender apresentar qualquer sugestão fundamentada ou minimamente douta sobre a matéria, parece-me lógico que a hipótese da “desordenação” dos fragmentos deveria ser por todos os leitores experimentada. Suponho que o leitor encontraria na sua ordenação dos fragmentos o desassossego que mais lhe inquieta, o seu desassossego. Possivelmente, depois desta leitura personalizada, o enigma ser-lhe-ia menos assombroso, dado que das mútliplas leituras dos fragmentos do L. do D. surge precisamante o que o livro mais reclama, a unidade do seu autor.
Creio que a leitura “caótica” do L. do D. permite um melhor entendimento da profunda humanidade do ajudante de guarda-livros que passa as noites a escrever no seu modesto quarto, e a do seu colega Moreira, e a do patrão Vasques, e a de outros personagens, que embora anóminos, podem ser identificados no quotidiano de todos nós.
Naturalmente, a sugestão proposta, vale apenas enquanto experiência subjectiva que me permitiu melhor compreender que não é só o Sr. Soares que sente a expansão da alma ao aprender com Caeiro: “Porque eu sou do tamanho do que vejo/E não do tamanho da minha altura.” Quem não se sente pasmado com a descoberta de ser do tamanho do que se vê? Creio que uma uma leitura personalizada do L. do D. é uma dilatação do pensamento que nos coloca diante da “existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícicos do conhecimento”, a matéria prima dos sonhos, as “maravilhas fluidas da imaginação”.
Orfeu B.

1 comentário:

Anónimo disse...

Será que Fernando Pessoa teria sossego se soubesse como a sua obra se enraizou na sua pátria?
Como as suas palavras acompanham as almas em desassossego, ... solitárias por serem incompreendidas ?
Como a sua dimensão humana acalma a revolta dos seus admiradores contra a imortalidade?

Irei sem dúvida experimentar uma leitura desnorteada e tentar encontrar serenidade no meu desassossego!
Um abraço,
Verónica