A viver e a trabalhar no mundo dos livros há mais de cinquenta anos, o senhor André, da Livraria Lácio, antiga 111, no Campo Grande, é um dos últimos verdadeiros livreiros de Lisboa. Alguém que conhece os livros, os autores, as edições. Sem um catálogo à sua frente, informa-nos do que se publicou ao longo do século XX. Sem catálogo, sem computador (aparato que nunca entrou, e, creio, nunca entrará na sua livraria), ele sabe onde se encontram os "seus" e os livros dos "outros", quem os escreveu, quem os editou. Às vezes, não chega imediatamente ao que se pretende, mas não desiste: "Deixe-me ver, esse livro teve uma primeira edição logo a seguir à Guerra, aí por finais dos anos quarenta..." E enquanto investiga na prateleira, vai-nos contando coisas do autor, coisas da época em que o livro foi escrito, uma história sobre o editor que o publicou. E quando pensamos que ele se tinha esquecido do nosso pedido, ei-lo com o livro na mão. Ou com a informação: "Tive-o cá durante muito tempo, mas vendi-o na semana passada. Vou ver se tenho outro exemplar no armazém, mas não me parece." E quando sabe que o comprador é alguém nosso conhecido, ele sugere: "Conhece Fulano, não conhece? Por que é que não lho pede emprestado?"
Não sei se devolve os livros aos distribuidores, pois vejo os seus fundos editoriais em permanente expansão. Mas a sua livraria não vive só dos livros que vão saindo, também se alimenta dos livros usados, que ele adquire e reabilita com o carinho de um verdadeiro bibliófilo. Um dia ,perguntei-lhe quantos livros teria na sua livraria, pergunta a que ele não soube responder. E como eu insistisse e aventasse um número (quarenta mil, não?), ele hesitou: "Aqui na livraria, não, mas com os do armazém..." Foi a primeira vez em que não me conseguiu dar uma informação precisa sobre livros.
Na sua livraria, não se utilizavam, até há muito pouco tempo, cartões bancários. Quando se comprava, pagava-se em dinheiro ou passava-se um cheque. Mas quando não se dispunha nem de uma coisa nem de outra, ainda poderia haver uma solução: ficava-se a dever, pois existia (e, penso que ainda existe) um livrinho de assentos dos fiados, pelo menos para os clientes mais fiéis.
Como ele conhece os meus gostos literários, reserva-me os livros de contos que vai adquirindo nas bibliotecas que arremata: "Veja se lhe interessam estes livros que me chegaram. Não creio que já lhos tenha vendido." E, como sempre, ele está certo. E foi assim que comprei alguns livrinhos de contos de autores americanos, publicados, nos anos cinquenta, sessenta, por editores portugueses. Entre eles, os "Sonhos de Inverno", de Scott Fitzgerald, editado pela Portugália, em 1965. E fiquei maravilhado. Eu já conhecia outros contos do autor, além dos romances clássicos, "O Grande Gatsby", "Terna é a Noite", mas nunca tinha lido aqueles continhos. O título da obra - "Sonhos de Inverno" - é o título do primeiro conto, mas podia aplicar-se a qualquer um dos cinco textos que a constituem. As histórias são diferentes, envolvendo personagens, locais e situações diversas, mas, em todas elas, a mulher tem um papel central. E, em quase todas, ela tem um estatuto de superioridade - moral, social, psicológica - em relação ao homem, que se limita a gravitar na sua órbita, em dependência do amor que ela lhe possa conceder. Em quase todas, pois em "Um Caso de Alcoolismo", a enfermeira que assiste ao doente famoso e tudo faz para lhe poder valer, depara-se com uma barreira que a sua solicitude não consegue transpor. É uma história forte, em termos temáticos, mas, a meu ver, a menos conseguida sob o ponto de vista da construção literária. Talvez porque se opera, nela, uma inversão de papéis, pois a mulher desempenha, aqui, o papel que, nas outras histórias, compete ao homem, o que fragiliza a caracterização das personagens e compromete a dramaticidade da acção.
"Sonhos de Inverno", os sonhos que se constroem no Inverno de todas as esperanças e que nos confortam com o calor da afectividade que permanece para além das contrariedades, da frustração da sua não concretização. E é exactamente essa capacidade de sonho para além da frustração que torna Scott Fitzerald um dos grandes construtores de personagens e situações da literatura americana. Por vezes, considera-se Fitzerald como um dos precursores do existencialismo em literatura. Admitamos que sim, mas apenas na medida em que resistir é existir.
Ora, também o meu ilustre amigo e livreiro, o senhor André, é um sonhador, sonhador descontente, decepcionado pelo que se passa no mundo da cultura em que vivemos. Mas que não desiste: continua a viver, sete dias por semana entre os seus livros, continua a promover os livros, continua a estar atento aos interesses dos seus amigos-clientes, continua a partilhar do prazer que os "seus" livros dão àqueles que os lêem: "Ah, sim... gostou dos "Sonhos de Inverno"? Fico muito contente!" E aquele que continua a sonhar no Inverno do seu descontentamento é alguém que continuará a existir, para além de todas as vicissitudes, de todas as contrariedades do viver quotidiano.
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