A senhora que trabalha em nossa casa resolve, de vez em quando, parar com os seus afazeres habituais e dedicar-se à “arrumação” dos meus livros. Segundo dois critérios, consoante as situações: se os livros estiverem postos ao alto na prateleira, passarão imediatamente a ficar “arrumados” pelas suas alturas; se os livros estiverem simplesmente empilhados, continuarão a ficar numa pilha, mas segundo as suas espessuras.
Por mais que lhe peça, que lhe ordene, pouco ou nada consigo: “Custa-me tanto ver as coisas todas desarrumadas…” Ultimamente, já nada digo, até porque aquelas “arrumações” trazem, por vezes, surpresas agradáveis: obras esquecidas, sepultadas no meio de tantas outras, acabam por voltar a ver a luz do dia, a exigir que eu as leia, que lhes dê uma nova existência.
Foi o que aconteceu esta semana: inesperadamente, encontrei, no cimo de um monte de livros, uma obra de Fernando Pessoa, Aviso por Causa da Moral (Hiena Editora), que contém um ensaio que ficou célebre na história da literatura portuguesa: “António Botto e o Ideal Estético em Portugal”. Como tinha outros textos para ler, deixei o Pessoa e o Botto para leitura posterior e desci para o andar de baixo. Mas, mal acabara de chegar ao piso inferior, deparei com outra estante com sinais evidentes de “arrumação” recente. A curiosidade fez-me parar, espreitar o que ali haveria de “novo”. À frente de todos, um livro de José Régio, António Botto e o Amor! Como a minha empregada não é versada na coisa literária e como não acredito no acaso, só me restava uma alternativa: sujeitar-me ao que os deuses estavam a exigir de mim. Voltei ao andar de cima, peguei no livro do Pessoa, juntei-lhe o livro do Régio e fui para a sala, a folheá-los, a tentar perceber por onde tinham andado naqueles anos todos. Mistério maior, o da obra do Régio: era uma edição de 1937, publicada pela Livraria Progredior, do Porto (casa há muito desaparecida). Na primeira folha, o meu nome e uma data: Setembro de 1949, o mês em que fiz 16 anos. E ressurgiu-me o passado e as circunstâncias que me levaram à aquisição do livro: naquelas férias, eu tinha lido As Canções de António Botto (edição da Livraria Bertrand) e tinha ficado maravilhado (como se pode ficar aos 16 anos!) com a sua poesia.
E, como não podemos fugir ao que os deuses nos determinam, tenho, desde esse momento, lido e relido As Canções, o ensaio de José Régio, As Páginas de Doutrina Estética de Fernando Pessoa (Editorial Inquérito). Lido, sim, e revivido as emoções que a poesia de António Botto sempre me havia suscitado.
As Canções de António Botto é uma obra ímpar na literatura portuguesa, na qual se agrupam (em versão definitiva) os diversos livros que o autor foi publicando nas primeiras décadas do século XX.
A obra inicia-se com um texto de Fernando Pessoa, de que transcrevo uma parte:
A noção de beleza masculina, é de todos os elementos do ideal estético, aquele que mais pode servir de arma contra a opressão do nosso ambiente; daí servir-se António Botto dela com uma constância e uma persistência que há não só que compreender, mas que louvar. António Botto é um esteta grego nascido num exílio longínquo. Ama a Pátria pérfida com a devoção violenta de quem não poderá voltar a ela.
Pessoa é o primeiro a chamar a atenção para a poesia de António Botto, ao publicar, em 1922, o artigo já referido. Por sua vez, José Régio, na obra citada (1937), organiza os textos que lhe havia dedicado, nos quais escreve:
António Botto é acima de tudo um voluptuoso e um intelectual. O seu intelectualismo é tanto mais real, tanto mais fundo, quanto se revela verdadeiramente individualizado; e quanto se desenvolveu, não, como em tantos outros, ao contacto dos livros, mas ao contacto da vida.
Se cito estes dois autores, Pessoa e Régio, e respectivas datas dos seus ensaios críticos, pretendo fundamentalmente duas coisas: mostrar a importância que António Botto teve na nossa poesia na primeira metade do século XX; chamar a atenção para a novidade radical da sua poesia, motivo de escândalo para a sociedade do seu tempo, como se pode comprovar com o panfleto que estudantes de Lisboa fizeram circular, em 1923, pedindo a proibição e a apreensão dos seus livros. Vejamos alguns exemplos dessa “imoralidade” que tanta mossa fez ao “provincianismo mental português”:
Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
- És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.
Este é um dos textos do primeiro livro de As Canções (“Adolescente”), em que António Botto expressa, em toda a sua plenitude, o amor pelo “senhor dos meus olhos”. Vejamos outro poema do mesmo livro:
Anda, vem…, porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, – rosa de lume?
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.
Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!
E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!
Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos…
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!
Esta paixão, este desejo de “Adolescente” vai-se alterando ao longo do tempo, como se poderá constatar pelo livro Dandysmo, de que transcrevemos um poema:
Na última carta
Chamavas-me decadente;
E eu achei graça,
Fez-me rir
A tua carta
Quiseste insultar-me,
E afinal,
Conseguiste ser gentil.
Os homens
- Ou os povos;
Saturados
De tudo compreenderem,
Decaem
Quando preferem
Ao gosto austero de criar,
O estéril
E fino deleite
De contemplar o que está feito.
Esta evolução acentua-se ao longo dos livros que compõem As Canções, para assumir uma forma muito própria – a perda, a saudade – no último livro, Toda a Vida, de que é exemplo este poema:
É tamanho o meu medo de perder-te
Que penso que te perco a cada passo.
- Se te perdesse, em verdade,
Iria perguntar
Ao mistério da saudade:
E agora, o que é que eu faço?!
Talvez me respondesse: Espera, qualquer dia
Há-de voltar se o seu amor não mente;
- Mas quando a gente gosta não confia
Nem se humilha a esperar e a ser ausente
E, no último poema desse livro, a despedida, a saudade (sempre a saudade), a morte e, no final, um toque de ironia, a admirável ironia que atravessa muita da sua poesia.
Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?
O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: “Não volto a procurar-te”.
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.
Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
- Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer:
- Ficarmos alheiados ou suspensos, -
Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...
Não leias êstes versos. Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira
António Botto, considerado no seu tempo, como um “poeta maldito”, assume, hoje, um lugar cimeiro na história da poesia portuguesa: um dos seus maiores líricos e, no dizer de Fernando Pessoa, o seu único esteta.
Por mais que lhe peça, que lhe ordene, pouco ou nada consigo: “Custa-me tanto ver as coisas todas desarrumadas…” Ultimamente, já nada digo, até porque aquelas “arrumações” trazem, por vezes, surpresas agradáveis: obras esquecidas, sepultadas no meio de tantas outras, acabam por voltar a ver a luz do dia, a exigir que eu as leia, que lhes dê uma nova existência.
Foi o que aconteceu esta semana: inesperadamente, encontrei, no cimo de um monte de livros, uma obra de Fernando Pessoa, Aviso por Causa da Moral (Hiena Editora), que contém um ensaio que ficou célebre na história da literatura portuguesa: “António Botto e o Ideal Estético em Portugal”. Como tinha outros textos para ler, deixei o Pessoa e o Botto para leitura posterior e desci para o andar de baixo. Mas, mal acabara de chegar ao piso inferior, deparei com outra estante com sinais evidentes de “arrumação” recente. A curiosidade fez-me parar, espreitar o que ali haveria de “novo”. À frente de todos, um livro de José Régio, António Botto e o Amor! Como a minha empregada não é versada na coisa literária e como não acredito no acaso, só me restava uma alternativa: sujeitar-me ao que os deuses estavam a exigir de mim. Voltei ao andar de cima, peguei no livro do Pessoa, juntei-lhe o livro do Régio e fui para a sala, a folheá-los, a tentar perceber por onde tinham andado naqueles anos todos. Mistério maior, o da obra do Régio: era uma edição de 1937, publicada pela Livraria Progredior, do Porto (casa há muito desaparecida). Na primeira folha, o meu nome e uma data: Setembro de 1949, o mês em que fiz 16 anos. E ressurgiu-me o passado e as circunstâncias que me levaram à aquisição do livro: naquelas férias, eu tinha lido As Canções de António Botto (edição da Livraria Bertrand) e tinha ficado maravilhado (como se pode ficar aos 16 anos!) com a sua poesia.
E, como não podemos fugir ao que os deuses nos determinam, tenho, desde esse momento, lido e relido As Canções, o ensaio de José Régio, As Páginas de Doutrina Estética de Fernando Pessoa (Editorial Inquérito). Lido, sim, e revivido as emoções que a poesia de António Botto sempre me havia suscitado.
As Canções de António Botto é uma obra ímpar na literatura portuguesa, na qual se agrupam (em versão definitiva) os diversos livros que o autor foi publicando nas primeiras décadas do século XX.
A obra inicia-se com um texto de Fernando Pessoa, de que transcrevo uma parte:
A noção de beleza masculina, é de todos os elementos do ideal estético, aquele que mais pode servir de arma contra a opressão do nosso ambiente; daí servir-se António Botto dela com uma constância e uma persistência que há não só que compreender, mas que louvar. António Botto é um esteta grego nascido num exílio longínquo. Ama a Pátria pérfida com a devoção violenta de quem não poderá voltar a ela.
Pessoa é o primeiro a chamar a atenção para a poesia de António Botto, ao publicar, em 1922, o artigo já referido. Por sua vez, José Régio, na obra citada (1937), organiza os textos que lhe havia dedicado, nos quais escreve:
António Botto é acima de tudo um voluptuoso e um intelectual. O seu intelectualismo é tanto mais real, tanto mais fundo, quanto se revela verdadeiramente individualizado; e quanto se desenvolveu, não, como em tantos outros, ao contacto dos livros, mas ao contacto da vida.
Se cito estes dois autores, Pessoa e Régio, e respectivas datas dos seus ensaios críticos, pretendo fundamentalmente duas coisas: mostrar a importância que António Botto teve na nossa poesia na primeira metade do século XX; chamar a atenção para a novidade radical da sua poesia, motivo de escândalo para a sociedade do seu tempo, como se pode comprovar com o panfleto que estudantes de Lisboa fizeram circular, em 1923, pedindo a proibição e a apreensão dos seus livros. Vejamos alguns exemplos dessa “imoralidade” que tanta mossa fez ao “provincianismo mental português”:
Quem é que abraça o meu corpo
Na penumbra do meu leito?
Quem é que beija o meu rosto,
Quem é que morde o meu peito?
Quem é que fala da morte
Docemente ao meu ouvido?
- És tu, senhor dos meus olhos,
E sempre no meu sentido.
Este é um dos textos do primeiro livro de As Canções (“Adolescente”), em que António Botto expressa, em toda a sua plenitude, o amor pelo “senhor dos meus olhos”. Vejamos outro poema do mesmo livro:
Anda, vem…, porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, – rosa de lume?
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.
Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!
E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
- Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!
Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos…
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!
Esta paixão, este desejo de “Adolescente” vai-se alterando ao longo do tempo, como se poderá constatar pelo livro Dandysmo, de que transcrevemos um poema:
Na última carta
Chamavas-me decadente;
E eu achei graça,
Fez-me rir
A tua carta
Quiseste insultar-me,
E afinal,
Conseguiste ser gentil.
Os homens
- Ou os povos;
Saturados
De tudo compreenderem,
Decaem
Quando preferem
Ao gosto austero de criar,
O estéril
E fino deleite
De contemplar o que está feito.
Esta evolução acentua-se ao longo dos livros que compõem As Canções, para assumir uma forma muito própria – a perda, a saudade – no último livro, Toda a Vida, de que é exemplo este poema:
É tamanho o meu medo de perder-te
Que penso que te perco a cada passo.
- Se te perdesse, em verdade,
Iria perguntar
Ao mistério da saudade:
E agora, o que é que eu faço?!
Talvez me respondesse: Espera, qualquer dia
Há-de voltar se o seu amor não mente;
- Mas quando a gente gosta não confia
Nem se humilha a esperar e a ser ausente
E, no último poema desse livro, a despedida, a saudade (sempre a saudade), a morte e, no final, um toque de ironia, a admirável ironia que atravessa muita da sua poesia.
Tanta carta a falar do nosso amor,
Tanta coisa que morre e nem nos deixa
Sequer um vago som de simpatia?
O que eu chorei quando esta recebi,
Esta que diz: “Não volto a procurar-te”.
E atrás de ti segui por toda a parte,
Até que te encontrei; e ardentemente
Voltámos à loucura que findou.
Como é que a gente pode mudar tanto
Sem sentir pela hora que passou
- Por essa hora linda de prazer,
Uma saudade, um pormenor qualquer:
- Ficarmos alheiados ou suspensos, -
Uma tristeza, uma tremura, um ai
Que nasce e vai morrer lá onde a realidade
Começa e não acaba e nunca expira?...
Não leias êstes versos. Tudo isto,
Tudo isto, afinal, é só mentira
António Botto, considerado no seu tempo, como um “poeta maldito”, assume, hoje, um lugar cimeiro na história da poesia portuguesa: um dos seus maiores líricos e, no dizer de Fernando Pessoa, o seu único esteta.
1 comentário:
O ESTETA PERFEITO
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