sábado, 2 de maio de 2009

AS PEQUENAS GRANDES HISTÓRIAS


Se todas as formas e todos os géneros literários têm dificuldades e características específicas, nenhum sobreleva em dificuldade o que acontece com as pequenas histórias. Histórias em que cada palavra, cada ritmo de frase, é aquele e só aquele. Histórias que têm um pé na oralidade e outro na escrita. Histórias que, para atingirem o que o autor pretende, têm de funcionar plenamente numa primeira leitura. Embora este género tenha tido cultores desde sempre, atingiu, na segunda metade do século XX, inícios do XXI (em parte, por influência da Internet), uma expressão nunca antes alcançada. De todas, ou de quase todas as partes, chegam-nos continuamente notícias de novos autores, de novas formas, de novos conteúdos.
Assim, e por exemplo, a argentina Ana Maria Shua publicou, este ano, uma obra, “Cazadores de letras” (Páginas de Espuma, Madrid), na qual se apresenta um panorama completo dos seus “microrrelatos” ou minificções”, que, espero, venha a ser publicado em Portugal.
Tudo isto vem a propósito da obra de Manuel Rogério Gonçalves, “Um Senhor com Poderes Estranhos e Diversas Virtudes – 100 Textos de 100 Palavras” (Editorial 100), que, em 2008, fez a sua estreia neste género literário. Obra extremamente interessante, a reflectir a cultura e a vivência do autor. Escrita numa linguagem elaborada, plena de subtileza e de humor (por vezes, de ironia), abrangendo situações e temas diversos. Embora um dos preceitos clássicos deste género se cumpra, ou seja, a acutilância de cada uma das histórias torna-se evidente logo numa primeira leitura, os diversos sentidos que elas encerram só surgem em leituras posteriores.
A variedade dos temas tratados e os diversos estilos de escrita utilizados talvez permitissem uma organização dos textos por grandes temáticas. Mas se o autor não o fez, não cumpre a mim fazê-lo… No entanto, não resisto à tentação de dar alguns exemplos que ilustram o que estou a dizer.
Assim, o texto “O que fazer de uma história exemplar?” é um exemplo da ironia com que o autor aborda muitos assuntos. Texto que começa por uma história que vai dar origem a outra:

“Naquela manhã em que os paroquianos se juntaram na igreja para rogar ao Altíssimo que lhes mandasse chuva, foram invectivados do púlpito: - Gente de pouca fé! Vêm pedir chuva e não trazem guarda-chuva.”

Depois desse começo, o autor continua:

“Algumas das histórias, aqui compiladas, não as inventei eu de todo. Ainda assim, para além de as formatar ao tamanho que me propus, esforços não poupo para torná-las minhas. Vou falar de uma senhora, ali ao lado, no jardim do Marquês, que nunca desiste de me oferecer panos de louça. Lembrar-me-ei de dizer-lhe o sítio, que eu conheço, onde irá vender guarda-chuvas num dia de verão”

Ou a história de um “impenitente solteirão” (“Quem tarda se guarda”), que, “para cortar nas despesas”, parte sozinho para viagem de núpcias.

“O impenitente solteirão, com os anos pesando, irá perguntar à senhora que lhe presta cuidados se ela o aceita por legítimo esposo. Tudo será da maneira mais simples, sem flores, sem música ou brindes. Ela irá de branco ou da cor que quiser. Ele mandará limpar a seco o fato de domingo. Ela irá pagar a promessa que fez de não morrer solteira. Ele assistirá a uma missa por alma dos Pais. Tão felizes vão, ela dizer que sim e ele também o que ficará nos papeis. E, depois, para cortar nas despesas, ele partirá, sozinho, em viagem de núpcias”.

Outras histórias expressam as reflexões do autor sobre a criação artística. É o caso do texto “Terminado definitivamente definitivamente inacabado”, com uma referência à criação divina:

Há um momento em que termina (definitivamente) o gesto do criador, quando o pintor põe de lado o pincel, o escritor pousa a caneta. O objecto terminado (finalmente) de criar, e que se dizia, até então, por acabar, vai tornar-se, definitivamente (para sempre) inacabado. Porque a obra criada, separada do seu criador, fica disponível para nova vida num diálogo incessante com quem apareça disposto a visitá-la. Toda a obra de arte, enquanto vai vivendo esse diálogo, lembra e vincula o criador. Como teria passado isso pela mente de um deus, a vinculação desse deus aos objectos da sua Criação?”

Quase a terminar o livro, Manuel Rogério Gonçalves dá-nos um texto (“De um jogo infantil, a Vida”), em que o Sonho e a Poesia (que subjazem a todos os escritos) são assumidos de forma clara e precisa:

“Talvez por outras palavras recitado, de um jogo infantil – Minha Mãe, dá licença? – Sim, minha filha: dois passos à frente. – Minha Mãe, dá licença? – Dou, minha filha: um passo para trás – aprendi que a Vida não é o trajecto linear, noutro tempo sonhado. Dor suportável pela certeza de que nunca serão vãos os passos em frente – a certeza mesma de nada deter um fio de água desde que da nascente se soltou. Embora com um coração estremecido de criança que gostaria de ganhar sempre e tem pena, aqui vou maravilhado de a Vida, mais e mais, se tornar um caudal imparável”.

Esta foi a “leitura” da obra que acabo de “reler”. Outros leitores terão certamente outras leituras. Mas sejam elas quais forem, algumas das histórias que integram o livro de Manuel Rogério Gonçalves não poderão deixar de fazer parte de uma antologia de autores portugueses que cultivam este género literário. Que seja para breve essa antologia!

2 comentários:

Bia disse...

Seu blog é ótimo! Só de olhar os marcadores e ver tantos nomes de grandes autores, já virei fã!

Até mais!

Bia
Livros de Bia

Ana Loura disse...

gefinat2848O Rogério faleceu esta manhã do dia 16 de Fevereiro 2013 :((