Várias razões me levaram a ler o livro de Andrea Camilleri, “O Fato Cinzento” (Bertrand Editora): por se tratar de um escritor que eu não conhecia; por serem raras as traduções de obras italianas; por o autor ser considerado um dos grandes escritores italianos da actualidade; por a crítica valorizar esta obra, nomeadamente pelo modo como a temática é tratada.
Camilleri (agora com 84 anos) dá-nos uma história tradicional, que, contrariamente ao que alguma crítica diz, deve mais a Tolstói do que a Chekov: um cavalheiro, alto funcionário de um banco, em Palermo, casa com uma jovem, 25 anos mais nova, e passa a viver obcecado pelo desejo que a sua bela e erotizada mulher lhe provoca. A história, bem construída, é-nos apresentada pelo ângulo de visão do marido, que oscila nos sentimentos que a relação conjugal lhe vai provocando e, daí, nos juízos de valor sobre a sua mulher. Talvez por isso, o Corriere della Sera, o jornal italiano de grande circulação, escreve: “Camilleri segue o batimento da alma feminina como ninguém”. Frase que os editores portugueses colocaram na capa do livro, o que nos pode fazer crer que este romance caracteriza com propriedade o sentir, o pensar da mulher. Ora, em minha opinião, passa-se exactamente o contrário: é do homem, do sentir do homem velho, que a obra trata, do modo como ele vê a mulher que ama e deseja, do modo como o seu progressivo envelhecimento vai condicionando a sua visão sobre a companheira – infiel, belíssima e controladora da relação conjugal até aos mais ínfimos pormenores.
Na realidade, talvez as coisas não possam deixar de ser assim. Ou talvez sejam poucos os casos em que tal não aconteça, isto é, que o escritor caracterize a mulher sem se centrar nas suas próprias emoções ou que a escritora caracterize o homem não se centrando no seu sentir, no seu pensar. E entre as excepções conta-se, sem dúvida, Henry James (“Retrato de uma Senhora” e “Daisy Miller”, por exemplo). Possivelmente, pelo toque de feminilidade de que o autor deu mostras ao longo da vida...
Do que escrevi, que não se infira que desaconselho a leitura desta obra. Antes pelo contrário: Andrea Camilleri é um escritor que sabe contar uma história (mesmo quando esta se desenvolve à volta de uma temática tradicional), um escritor que domina a técnica da escrita, com soluções próprias de estrutura narrática, adequadas ao desenvolvimento de um enredo que se centra na vivência psicológica das personagens.
2 comentários:
Se bem entendi, na sua opinião não é possível para um escritor/a "encarnar" um personagem do sexo oposto a não ser que esse mesmo sexo "viva" dentro dele...não sei se concordo :)
Gostei muito, muito do livro.
Como pensam as mulheres é óbvio que me é mais familiar, conhecer o "outro" lado foi o que mais me encantou.
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