Não deixa de ser extraordinário que no início do século XXI uma obra literária sobre um tema bíblico possa ainda causar polêmica. Também não me parece crível que os intervenientes (de ambos os campos da contenda) ainda tenham fólego e pretendam que qualquer tipo de discussão racional sobre a matéria seja possível. Relativamente à substância da fé, não há razão para supor que argumentos lógicos, factuais e históricos tenham qualquer efeito demonstrativo, pois a crença não está baseada nas leis da realidade. Na verdade, eu sempre supus que o assunto já estivesse arrumado, e que as esferas de influência e acção já estivessem há muito delimitadas. O vigor das reacções e a pretensão de que a discussão é nova demonstraram que eu estava equivocado ao assumir que por ser anacrónica a temática não acenderia as paixões.
Mas quando as discussões causam-me bocejos, eu costumo procurar o que um velho mestre escreveu sobre as matérias em debate. E tenho que dizer que não fiquei nada decepcionado com a verve dum velho amigo doutros tempos, no caso Anatole France, ao examinar a questão da moralidade derivada da religião e da evolução ética da humanidade ao longo dos tempos.
Escrito há mais de um século (1908), a Ilha dos Pinguis descreve desde a sua gênese, a evolução da Pinguínia, a civilização que teve origem na transformação dos pinguins em homens. S. Mäel era um santo homem que dedicara a sua pia vida à catequese e à salvação das almas dos habitantes de muitas ilhas. Já com uma idade avançada, meio surdo e quase cego, é tentado pelo diabo a instalar uma vela na sua improvável embarcação de pedra, para assim poder chegar mais rapidamente ao seu destino e salvar mais almas. O engenho do demónio leva-o através de mares de gelo, até uma ilha habitada por pinguins. Convencido que chegara à ilha da contrição, impressionam-lhe os seus habitantes pelo seu silêncio e pela pureza dos seus corações. Ensina-lhes então o Evangelho, e convencido que estava que as aves haviam sido iluminadas pelo ensinamento, passa a batizá-las por três dias e três noites.
No Paraíso contudo, uma assembleia composta por clérigos e doutores, na presença do próprio Senhor, discute a validade do duvidoso baptismo. Argumenta S. Patrick:
"O sacramento do baptismo é nulo quando ministrado a aves, como o sacramento do casamento é nulo quando ministrado a um eunuco."
Contra-argumenta o papa S. Dâmaso, que para saber se um baptismo é válido, há que considerar quem o ministra, e não quem o recebe. Afirmação que levanta a questão: mesmo que o recipiente seja uma ave? Um quadrúpede? Um objecto inanimado? Uma estátua? O grande Santo Agostinho, responde que com certeza! As fórmulas sacramentais estendem-se aos espíritos brutos e à matéria inerte.
A longa discussão não chega a consenso, mas por fim o Senhor decide por validar o baptismo dos pinguins, ainda que correndo o risco de que no processo de adquirirem uma alma esta se lhes escape e vá para o Inferno. Assim, o Senhor declara: Sede homens!
A partir desta metamorfose evolui a Pinguínia como as outras civilizações. Ao uso dos primeiros véus, segue o pecado. A desigualdade de força muscular e da agressividade dos indivíduos dá origem ao assassínio no processo de delimitação dos campos e da instauração da propriedade. Segue-se um período dominado pela superstição e pelo mito do dragão, que na verdade não passava dum astuto pinguin que aterrorizava os habitantes da Pinguínia para roubar-lhes os bens. O próprio acaba por inventar um esquema para derrotar o dragão (cuja vestimenta era então envergada por crianças inocentes) e fundar a poderosa dinastia dos Draco.
Depois desta fase, desenvolve-se a história da Pinguínia em torno das extravagâncias e excentricidades de seus reis e rainhas. Mas tempos renovados e mais próprios surgem após o renascimento e à idade média. A Pinguínia é agora um próspero regime republicano. Mas as novas leis para defender a propriedade, que durante séculos pertencera à nobreza e ao clero, e que agora está nas mãos dos burgueses e dos proprietários rurais, não são menos terríveis.
O abençoado príncipe da deposta dinastia de Draco vive no exílio à espera de que nobres e membros influentes da igreja criem o caos necessário que desmoralize o regime republicano e reestabeleça a monarquia. Mas o novo regime resiste, pois adapta-se melhor que o antigo às vicissitudes dos novos tempos.
Bastante ilustrativo deste estado de coisas foi o caso Pyrot. Pyrot, um filho de Israel de modesta condição, cioso por conviver com a aristocracia e de servir o seu país, entra para o exército dos Pinguins. O general Greatauk, ministro da Guerra não lhe suportava o zelo, o nariz adunco, a vaidade, o gosto pelo estudo, a sua conduta exemplar, e responsabiliza-o por todos os problemas.
Uma manhã, o general Panther, chefe do Estado Maior, informa Greatauk que oitenta medas de feno haviam desaparecido e possivelmente vendidas a baixo preço à Marsuína, a arqui-inimiga potência estrangeira. Greatauk exclama espontaneamente: "Dever ser Pyrot!"; "Só nos resta prová-lo", concorda Panther ... Suponho que não seja necessário continuar.
E nesse passo evolue a Pinguínia, de modo que as medidas mais descabidas dos governos têm frequentemente origem em questões menores, incluindo também os descaminhos amorosos de membros do executivo. E naturalmente, pode-se sempre contar com "o patriotismo dos bancos" que todos os dias "reclama uma expedição civilizadora à Nigrícia", enquanto "o monopólio do aço cheio de ardor em proteger as nossas costas e defender as nossas colónias, exigia freneticamente couraçados e mais couraçados". E quando não há nada para fazer calar o clamor popular relativo à alguma matéria envolvendo corrupção, tráfego de influência, e assuntos afins, o governo manda prender alguns opositores importantes e incómodos (socialistas naqueles tempos).
A civilização Pinguin atinge então o seu apogeu. Na sua maior cidade, quinze milhões de homens trabalham à luz de lanternas, sob um céu cuja claridade não atravessa os fumos das fábricas. No seu seio "as paixões que prejudicam o aumento ou a conservação dos bens eram consideradas desonrosas" ... "O Estado assentava firmemente em duas virtudes públicas: o respeito pelo rico e o desprezo pelo pobre."
O epílogo da civilização Pinguin? A auto-destruição perpetrada por alguns visionários ...
Naturalmente, Anatole France não se refere à crise e à derrocada inevitável do mundo quando conduzido exclusivamente pela ambição material com a terminologia que hoje utilizamos, mas não escapou à sua arguta análise que as causas dos problemas do seu tempo não se alterariam substancialmente no futuro. São o fruto da história e nas ambições desmesuradas dos indivíduos que se traduz na História da humanidade. A sua solução pode parecer ingénua e idealista, contudo hoje sabemos que um mundo baseado em grandes disparidades materiais não é viável. No início do século XX, estas disparidades e a luta por hegemonias deram origem a duas guerras mundiais. No início do século XXI, discutimos o aquecimento global e a solução de crises que hoje entendemos serem globais; as guerras são mais locais; mas por quanto tempo?
Porém, o que é mais evidente ao se ler Anatole France e os seus contemporâneos, é a sensação de que os escritores de então tinham a profunda convicção da necessidade do seu trabalho no processo de construção dum mundo mais justo. Sobretudo na primeira metade do século XX, os escritores não eram membros criadores da dita indústria do entretenimento. Eram livres pensadores a serviço da humanidade.
E enquanto a polêmica do dia se desenvolve, ou é substituida por outra igualmente enfadonha, eu vou novamente à procura de livros interessantes, muito provavelmente escritos por antigos mestres.
Orfeu B.
1 comentário:
Tenha porém em consideração que esses antigos mestres de que fala, na sua grande maioria, só o foram reconhecidos como tal depois de morrerem :):):)
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