domingo, 27 de dezembro de 2009
A MÚSICA DA FOME
Entro na leitura de Clézio como se entrasse numa igreja ou numa catedral. A frase inicial “Conheço a fome, senti-a.” soa como um arco tenso que me atira a flecha das palavras sem adornos e me coloca frente a uma raiz carregada de emoção e verdade.
Essa emoção conduziu-me ao longo do livro entregue às palavras trabalhadas musicalmente num andamento cuidadoso, contido e seguro.
Tudo se passa nos olhares dos personagens, nas suas interrogações e memórias que se cruzam para construir o tempo da 2ª Guerra Mundial em França. O tempo da fome. E não é só de fome de comida que o livro fala, embora seja esse o seu ponto de partida e o seu cenário de fundo onde se move a principal personagem, Ethel que atrevessa a fome enquanto atravessa a adolescência.
Todo o romance me transportou para um tempo que não foi o meu, uma cidade que não foi nem é a minha, uma forma de olhar que não será a minha. E, no entanto, deve ser esse o sinal da boa literatura ou simplesmente da literatura, reconheço-me nas ruas, nos sobresaltos, nos olhares e nos silêncios que vão anunciando o naufrágio de uma família francesa com origem na Ilha Maurícia como o próprio autor.
Naufrágio dentro de outro naufrágio. Porque o pai, Alexandre, embarca em todos os negócios falhados, todos os naufrágios anunciados. E o único sonho verdadeiro, partilhado pela pequena Ethel e pelo tio avô, a construção da Casa Cor de Malva, acaba por falhar com a morte do tio avô e o apodrecimento das madeiras.
A mãe, Justine, embora se mantenha de pé até ao fim, falha perante o amor de Alexandre com Maude, e perde-se em discussões de que Ethel vai ouvindo aqui e ali apenas farrapos e reflexos.
No salão, à volta de Alexandre, juntam-se chauvinistas, anti-semitas, reaccionários, fascitoides que através dos seus diálogos nos vão dando a compasso a música do caminho para o abismo da guerra.
A guerra chega e vem a fome, descrita em pinceladas comoventes. E esta fome,
física, de tão absorvente, até parece aliviar a outra, a fome de alegria e de sonho.
O amor de Ethel por um silencioso inglês, amor aparentemente realizado embora sem palavras, leva-a para o Canadá no fim da guerra e da adolescência, afastando-a assim desta música e desta fome que talvez não termine, conforme nos é sugerido pela visita do filho de Ethel a Paris nas páginas finais.
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