terça-feira, 5 de janeiro de 2010

ANTICLERICALISMO EM ALBERTO CAEIRO E GUERRA JUNQUEIRO




Se Alberto Caeiro é conhecido pelo seu lirismo panteísta, Guerra Junqueiro (o Junqueiro de “A Velhice do Padre Eterno”) é geralmente conotado com a sátira, a virulência anti-clerical. Mas será mesmo assim? Desta pergunta, decorre o texto que se segue

"Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado."

Assim começa Alberto Caeiro o seu poema "O Guardador de Rebanhos". Através destes primeiros versos, fica dado o tom lírico do texto. Lirismo eivado de amor por tudo o que existe na Natureza. Ora, é exactamente esta característica que tem levado os críticos a considerar "O Guardador de Rebanhos" como um dos grandes poemas panteístas da nossa literatura. Admitamos que assim seja. Mas, se o admitirmos, logo surge uma pergunta: como se explicam as primeiras estrofes do "canto" VIII? Estrofes do mais violento anticlericalismo da poesia portuguesa. O menino Jesus, que tinha descido à terra por um raio de sol, fala ao poeta do céu, do seu Pai e da sua Mãe:

"Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!"

E depois de descrever as brincadeiras, as pequenas "diabruras" do Deus menino, Caeiro acrescenta:

"Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou
"Se é que ele as criou, do que duvido".

A violência anticlerical explode, pois, em toda a sua força, a contrastar não só com o início do poema, como com as estrofes seguintes do texto. Embora compreenda o efeito contrastante que Alberto Caeiro-Fernando Pessoa pretende obter com a inclusão deste "intermezzo", não posso deixar de me espantar com a violência anticlerical que o caracteriza. Tão violento quão primário, o que, de modo algum, caracteriza a poesia de Pessoa. Anticlericalismo que se aproxima, e em muito, da poesia de "A Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro. Mas não é só neste aspecto que o poema de Caeiro-Pessoa se aproxima de "A Velhice...": as suas estruturas também apresentam grandes semelhanças. Como Pessoa-Caeiro, Guerra Junqueiro inicia o seu poema com uma estrofe feita de pureza e simplicidade:

"Ó almas que viveis puras, imaculadas
Na torre de luar da graça e da ilusão,
Vós que inda conservais, intactas, perfumadas,
As rosas para nós há tanto desfolhadas
Na aridez sepulcral do nosso coração;
Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas..."

Repare-se como o lirismo que percorre estes versos se constrói a partir de imagens, de metáforas que têm a alma humana e a Natureza como referentes centrais. Mas, rapidamente, essa toada de elevada espiritualidade transforma-se num violento ataque à religião católica, à sua Igreja, aos sacerdotes que a constituem. A obra, embora entremeada por alguns trechos de sentido lírico, é, no seu conjunto, uma violentíssima diatribe contra a Igreja e as "suas concepções" de Deus:

..."Como éle é velho, com o frio
Tósse; e Prudhome diz-lhe então:
- Deus, aqui tens êste bacio...
Não vás cuspir no meu salão.

E às vezes do alto do infinito,
Talvez depois dum mau jantar,
O Padre Eterno faz cabrito,
E enche o bacio a transbordar.

E o pote enorme onde cuspinha
O truculento Manitu,
Sem ninguém ver, logo à
noitinha
Vai despejá-lo Belzebut."

Por sua vez, a criação do mundo ("O Génesis") constitui uma das tiradas mais violentas, em que o sórdido se alia à mais desenfreada das mordacidades:

"Jeová, por alcunha antiga - o Padre Eterno,
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgaravatar co'o dedo no nariz,
Tirou dêsse nariz o que um nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da terra, e zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre-Onipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)

Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na terra fez o mar.
Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse inda dessa maneira
Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada marmota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sôbre a terra, e dêste modo insonte
Fez êle o megatério e fez o mastodonte..."

Creio que os exemplos que citei dão a dimensão do que pretendo fazer
ressaltar: as semelhanças entre o anticlericalismo dos dois autores. Semelhanças
na organização do discurso, nas terminologias, na construção das invectivas.
Evidentemente que em Alberto Caeiro surge como algo de pontual, o que não
acontece em Guerra Junqueiro, que utiliza este estilo de modo sistemático, com
um propósito bem definido: lutar contra o poder da Igreja Católica, enquanto
militante republicano que pretende minar o poder da Monarquia, de que a Igreja
era um dos suportes mais sólidos. Mas o escrito de Guerra Junqueiro data de 1882 e o de Caeiro-Pessoa de 1912, momento em que a República já estava implantada. Assim, o que se compreende em Guerra Junqueiro dificilmente será de entender em Caeiro-Pessoa. Não só pela sua inserção no tempo, como também pela falta de motivação de Fernando Pessoa para as lutas político-partidárias. Mas talvez possa haver uma explicação para o paralelismo entre “A Velhice do Padre Eterno” e “O Guardador de Rebanhos”. Ou seja, tratar-se-á de um mesmo artifício literário, através do qual se pretende fazer ressaltar a pureza, a beleza das “coisas simples e naturais”, por contraste com o “complicado”, o “bafiento” de crenças religiosas anquilosadas. Artifício extremamente evidente em Guerra Junqueiro, presente na estrutura temática de muitos dos poemas que constituem “A Velhice do Padre Eterno”, como é o caso de “O Melro”.
Como nota final, não posso deixar de formular uma pergunta: teria Alberto Caeiro colhido inspiração na obra de Guerra Junqueiro? Pergunta, questão, que nunca vi formulada pelos especialistas desses autores. Questão menor? Talvez não, até porque nos pode pôr na pista de alguma continuidade que a poesia do século XIX teve em autores da nossa modernidade. Inclusivamente, em Fernando Pessoa...

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