sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Como a água que corre


Sem relógio, sem calendário ..., o tempo passava como um relâmpago ou então durava eternidades. Nascia o Sol, e desaparecia, num sítio um poucochinho diferente do da véspera, um pouco mais cedo todas as noites, um pouco mais tarde todas as manhãs. A madrugada e o crepúsculo eram os únicos acontecimentos de monta. Entre eles algo corria que não era o tempo, mas a vida.

Como a água que corre

Marguerite Yourcenar

Suponho que o filósofo pré-socrático Heráclito tenha sido o primeiro a utilizar a imagem da corrente de um rio como metáfora para a passagem do tempo: “Nunca nos banhamos nas mesmas águas ...”. A justeza da imagem, útil na discussão filosófica, e relevante também na física, não deixa de fascinar poetas e escritores.

Marguerite Yourcenar, não escapou ao encanto do fluir da água e a mestria do seu estilo único e memorialista deu origem a nada menos do que uma obra prima. “Como a água que corre” (Comme l’eau qui coule) de 1982, é um livro composto por três novelas escritas em períodos distintos. Um livro de rara beleza, escrito por uma autora cujo compromisso para com a escrita era um exercício existencial que só podia ser considerado concluído quando a sua exigência de perfeição estava inteiramente satisfeita.

A primeira novela, “Anna, Soror”, escrita em 1922, apareceu em 1935 numa colectânea de textos da autora emtitulada La Mort Conduit l’Attelage (A Morte Conduz a Carruagem). Porém, com “o correr da água” a autora compreendeu que o título era demasiado simplista, pois descobriu “que a morte conduz a carruagem, mas a vida também”. Como a “água do rio”, “ou por vezes da torrente, ora lamacenta, ora límpida, que a vida é”.

Anna, Soror”, reeditada com acrescentos em 1982, descreve a evolução espiritual duma mulher que encontra na devoção religiosa a resposta ao amor que sente pelo irmão. O pano de fundo são uma Nápoles renascentista e uma Flandres em guerra. Austeridade e mortificação convivem com a alteração das lealdades políticas, que obrigam as mulheres, e Anna em particular, a casar segundo os interesses do momento e das famílias. Casamentos marcados pela indiferença e por gravidezes, “suportadas com resignação”; pelo “amor animal pelos filhos, que diminuía logo que dela deixavam de necessitar”. Anna, vive os seus últimos dias como pensionista num convento. Conquista a sua paz na resignação e nas leituras. Os seus derradeiros dias são de uma “felicidade violenta” que preenche “com seus ecos e reflexos, todos os recantos da eternidade”.

“Um Homem Obscuro” apresenta-nos Natanael, um homem simples, de alma límpida, que viveu nos Países Baixos no século XVII, depois de fugir de Inglaterra ainda muito jovem, por erroneamente pensar que teria cometido um crime. A aventura leva-o à América, onde vive com colonos ingleses que, abandonados, vivem praticamente como selvagens. Acaba por voltar para a Europa e instala-se nos Países Baixos, terra de seus pais antes de terem emigrado para Inglaterra. Ali trabalha inicialmente na tipografia do tio avaro, que acaba por enganá-lo na transacção da sua herança. Envolve-se então com uma prostituta do bairro judeu com quem tem um filho, Lázaro. Acaba como lacaio e termina os seus dias na solidão duma ilha de seu amo. Doente e completamente só, pronunciava alto o próprio nome para “comprovar que ainda possuía voz e fala”. “Continuava a gostar apaixonadamente do mar” para manter “o ânimo para gostar apaixonadamente de qualquer coisa”. Esgota-se o seu tempo sem sobressaltos. Não tem certeza que a chama que representa se apague completamente, mas “optava, de preferência, pela escuridão total, que lhe parecia a solução mais desejável: ninguém necessitava de um Natanael imortal ... À sua volta havia o mar, a bruma, o sol e a chuva, os bichos do ar, da água e da gândara; ele vivia e morria tal qual os bichos. Isso bastava.”

“Uma Bela Manhã” dá continuidade à história de Natanael, ao retratar a fuga de seu filho Lázaro para se juntar a uma trupe de teatro. Conduzem-no o anseio pela liberdade inerente à vida etinerante e a ambição de poder representar as mais diversas personagens, Lady Macbeth, Shylock, Jessica, Próspero, ou simplesmente um palhaço. Uma novela onde a ênfase situa-se no tempo futuro, aberto e auspicioso, escultor dum personagem que não tem uma forma própria, pois almeja ter mil formas.

Orfeu B.

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