quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A ENTREVISTA ENQUANTO GÉNERO LITERÁRIO

A leitura de “Porgy and Bess”, de Truman Capote, constituiu, para mim, uma revelação: estava perante um género literário que eu conhecia bastante mal, ou seja, a entrevista alcandorada ao seu mais alto nível. Entrevista que tem um pé no jornalismo e outro na autobiografia. Desde aí, passei a acompanhar, tanto em publicações portuguesas como estrangeiras, o que se ia publicando neste domínio. E, entre as primeiras, um nome sobressaía: Carlos Vaz Marques, entrevistador extremamente bem informado da obra dos escritores que ia entrevistando. Ora, é exactamente de uma obra de Vaz Marques que quero falar: “Entrevistas da Paris Review”.
Trata-se de uma selecção (e tradução) feita pelo autor, que acaba de ser publicada pela Tinta da China. Obra que agrupa entrevistas a dez grandes nomes da literatura do século XX: E. M. Forster, Graham Greene, William Faulkner, Truman Capote, Ernest Hemingway, Laurence Durrel, Boris Pasternak, Saul Bellow, Jorge Luis Borges e Jack Kerouac.
Evidentemente que gostaria de me referir a estas dez entrevistas, mas, como tal não é possível, limitar-me-ei a três delas, às que foram feitas a Truman Capote, Boris Pasternak e Jack Kerouac, tanto por razões de conteúdo como de forma. E, claro, pela diversidade das abordagens dos vários entrevistadores e pelas reacções dos escritores sujeitos ao escrutínio da entrevista. Convirá lembrar que as entrevistas da Paris Review constituem uma contribuição decisiva para o aparecimento da entrevista enquanto género literário. Fundamentalmente por duas razões: por se centrarem exclusivamente na obra literária do autor e por serem realizadas por escritores, ou por pessoas verdadeiramente ligadas à literatura (daí, perguntas estereotipadas como “de que fruto gosta mais” ou “qual a sua cor preferida” ficassem definitivamente banidas...)
Na entrevista que lhe foi feita por Pati Hill, Truman Capote aborda aspectos essenciais para compreendermos a sua obra. Assim, considera que a escrita de contos, no início da sua carreira literária, constituiu o treino mais adequado para o desenvolvimento da sua escrita futura. Inclusivamente, teria sido o conto que lhe permitiu adquirir o “controlo” necessário à sua escrita. Esclarece que, por controlo, entende a manutenção das “rédeas estilísticas e emocionais do nosso material”. E acrescenta: “eu acredito que uma história pode naufragar por um problema de ritmo numa frase – em particular se isso acontece já na parte do fim – ou por um erro na abertura de um parágrafo, ou mesmo de pontuação”.
A pergunta de como se desenvolve a técnica do conto permite-lhe explicar: “Dado que cada conto nos coloca problemas técnicos próprios, não se pode obviamente generalizar a esse respeito, numa base de dois mais dois é igual a quatro. Encontrar a forma certa para a nossa história é pura e simplesmente descobrir qual o modo mais natural de a contar. O teste para descobrir se um escritor adivinhou qual o formato natural para a sua história é apenas este: depois de a ler, consegue imaginá-la de outra maneira ou ela silencia-lhe a imaginação e parece-lhe absoluta e definitiva?”.
Quando lhe perguntam sobre a forma de melhorar a técnica da escrita, ele é peremptório: “O trabalho é a única forma de que eu tenho conhecimento. A escrita tem as suas leis de perspectiva, de luz e de sombra, tal como a pintura e a música. Se se nasce conhecendo-as, óptimo. Se não, tem de se aprender”.
Capote considera que nunca teve um momento de tranquilidade, exceptuando aqueles em que está sob o efeito de tranquilizantes, pelo que não poderá dizer que alguma vez tenha escrito uma obra em tranquilidade. E reconhece que uma “pontinha de stress” lhe faz bem.
Diz que lê demasiado, inclusivamente quando está a escrever, mas que não sente a “presença de outro escritor a infiltrar-se por debaixo da (sua) escrita”.
Considera, ainda, que todos os escritores têm um estilo, o que é imprescindível para a sua afirmação. Estilo que não se alcança de uma forma consciente. “Bem vistas as coisas, o estilo somos nós. No fundo a personalidade de um escritor tem imenso que ver com a sua obra”... “A humanidade individual do escritor, a sua palavra ou o seu gesto em relação ao mundo, têm de surgir quase como uma personagem que entra em contacto com o leitor. Se a personalidade é vaga ou confusa ou meramente literária ça ne vas pas”.
Truman Capote referiu-se também às condições e aos processos da sua escrita, aos diversos rascunhos que faz, ao facto de só conseguir escrever na cama; ao processo da escrita propriamente dita. Embora a história já esteja na sua cabeça, o que vai acontecendo ao longo do processo é algo de grande importância. Escrita que não é autobiográfica, pois a sua imaginação é suficientemente rica para poder prescindir de outras fontes que alimentem as suas histórias.
Se a entrevista a Capote está centrada única e exclusivamente na sua obra, a que Olga Carlisle faz a Boris Pasternak tem como referentes o ambiente em que vive o escritor, as suas concepções sobre cultura, literatura, arte. O que a não torna menos aliciante. Aliciante, sim, embora extremamente difícil de dar notícia nas poucas linhas de um blogue. Por outro lado, toda a entrevista é atravessada pelas descrições do ambiente em que vive Pasternak: a sua casa, pequena, acolhedora, a cidadezinha de escritores dos arredores de Moscovo, onde se situa, as paisagens naturais em pano de fundo. E, mais do que o envolvimento físico, o envolvimento humano em que Pasternak circula, dentro da sua própria casa. A sua presença, a sua personalidade, a aura de que dele se desprende. Este encantamento não é quebrado pela sua fala, quando aborda temas de literatura, antes pelo contrário.
Olga Carlisle (a entrevistadora, de ascendência russa) quer saber por que Pasternak abandonou a poesia, em que se tinha destacado nos anos iniciais da sua carreira literária. A resposta, à semelhança de todas as outras, veio simples e esclarecedora: “A minha geração deu por si no centro da história. As nossas obras foram-nos ditadas pela época. Faltava-lhes universalidade, agora envelheceram. Mais ainda, acredito que já não é possível à poesia lírica exprimir a imensidão da nossa experiência. A vida desenvolveu-se de um modo extremamente incómodo, extremamente complicado. Adquirimos valores que se exprimem melhor em prosa. Eu tentei expressá-los no meu romance e tenho-os presente no meu espírito enquanto escrevo a minha peça de teatro”.
Pasternak estava a escrever uma peça teatral que se situava noutra época histórica. Daí, as referências que faz a essa peça e ao que considera essencial numa obra cuja acção se situa no passado: “A princípio, consultei todo o tipo de documentos do século XIX. Agora, dei por mim terminada a pesquisa. No fim de contas, o que é importante não é a precisão histórica da obra mas a recriação bem sucedida de uma época. Não é o objecto descrito que importa, mas a luz que se derrama sobre ele, como de um candeeiro de sala ao longe”.
Sobre a eternidade de uma obra literária, considera “que, embora o artista vá morrer, a alegria de viver que ele experimentou é imortal. Se ela foi captada de uma forma pessoal e simultaneamente universal pode na verdade ser revivida por outros por intermédio da sua obra”.
As transcrições que acabo de fazer são exemplos das perspectivas de um grande senhor das letras, que paira sobre a sua obra e a de outros escritores, deixando aos vindouros um testemunho pleno de lucidez sobre a sua época e a sua escrita.
Totalmente diferente é a entrevista feita a Jack Kerouac. Realizada em casa do escritor (aliás, como todas as outras), desenrola-se em condições muito especiais, o que acabou por condicionar o posicionamento e o depoimento de Kerouac. Entrevista regada com algumas bebidas alcoólicas e pontuada pela ingestão de anfetaminas. Ted Berrigan conduziu o diálogo com a colaboração de dois poetas presentes, Aran Saroyan (filho do escritor William Saroyan) e Duncan McNaughton. Da conjugação destes elementos resultou uma entrevista extremamente dinâmica, em que a criação desempenhou um papel essencial. Exemplo deste dinamismo criador é o que aconteceu quando lhe perguntaram como escrevia os seus haiku: “Haiku? Quer ouvir um haiku? Como sabe tem de se comprimir em três curtas linhas toda uma grande história. Primeiro começa-se com uma situação de haiku – por exemplo, vê-se uma folha, como lhe disse a ela uma noite destas, a cair sobre um pardal durante uma enorme ventania invernosa de Outubro. Uma folha grande cai sobre um pequeno pardal. Como é que se comprime isto em três linhas? Em japonês tem de se comprimir em dezassete sílabas. Isso nós não temos de fazer em americano – ou em inglês – porque não temos a mesma treta silábica que o idioma japonês tem. Portanto, diz-se: ‘Pequeno pardal’ – não é preciso dizer pequeno, toda a gente sabe que eles são pequenos e portanto diz-se:

Pardal
Com uma grande folha sobre si –
Ventania

Não presta, não funciona, rejeito-o.

Um pequeno pardal
Quando uma folha de Outono subitamente se agarra a ele
Trazida pelo vento.

Ah, assim não dá. Não, é um bocadinho longo demais. Está a ver? Já é um bocadinho longo demais, Berrigan, está a perceber o que eu lhe estou a dizer?

Parece haver uma palavra a mais ou coisa assim, como aquele quando.
E assim:

Um pardal
Uma folha de Outono subitamente agarra-se a ele –
Trazida pelo vento!

Hei, assim está bem. Acho que o quando era a palavra a mais. Apanhou a ideia certa, O’Hara! “Um pardal, uma folha de Outono subitamente”, não temos de dizer subitamente, pois não?

Um pardal
Uma folha de Outono agarra-se a ele –
Trazida pelo vento!”

Apesar de algum esforço do entrevistador, Kerouac pouco fala da sua obra, das suas características, das influências recebidas. Preferiu falar das suas relações com outros escritores, como Allen Ginsberg e Burroughs. Enfim, um conjunto de referências a autores e obras, dados importantes para se compreender o que foi a “geração beat”. Do pouco que diz sobre a sua escrita, será de destacar o que se refere à emoção: “E podem ter a certeza de uma coisa, eu passei toda a juventude a escrever muito lentamente, a rever o que escrevia e a refazer tudo e a apagar e portanto escrevia uma frase por dia e a frase não tinha EMOÇÃO. Rai’s partam, é da EMOÇÃO que eu gosto na arte, não é da ASTÚCIA e da dissimulação de emoções”.
Ora, será esta necessidade de emoção e a opção pelo estilo confessional que o terão levado a escrever “Pela Estrada Fora” (“On the Road”), a sua obra mais emblemática.
Também é curiosa a referência que faz às drogas, ao modo como as utilizou para escrever algumas das suas obras, nomeadamente poesia. Poesia em que, a partir de certo momento, se terá verificado influência do Budismo.
Esta entrevista que vale, fundamentalmente, por revelar muito do mundo interior de Kerouac, pleno de contradições, por vezes a roçar o caos. Mas pouco nos diz sobre o modo como desse mundo brotou a sua obra, qual flor exótica cujas raízes nem o próprio conhece – e não será esta a prova provada de que estamos perante um verdadeiro escritor?

1 comentário:

António Ferra disse...

É um grande prazer ler estes apontamentos de Albano Estrela. Digo "Apontamentos", porque ele aponta para pormenores que lhe despertaram a curiosidade e a reflexão, e depois partilha-os com os que chegam até ele, sem que procure ninguém em especial. Neste caso, é através de um clique, fortuito ou não, neste blog. Creio que o suporte em papel, em forma de livro, daria outro prazer ao leitor de viajar com Albano Estrela nas suas observações.O ensaio está feito. Para mim, queconheço grande parte da sua obra,A E é sobretudo um contista. Esse sentido de "contar histórias", mesmo quando envereda por uma certa crítica literária, merecia que os seus textos nos fossem oferecidos em papel impresso. Para quando?

As saudações, também ao blog, do António Ferra