domingo, 13 de fevereiro de 2011

"A melhor coisa que há é ser criança. A segunda melhor coisa que há é escrever sobre ser criança." J.M.Barrie




“Os contos de fadas superam a realidade não por nos assegurarem que os dragões existem mas porque nos juram a pés juntos que os dragões podem ser vencidos."

G. K.Chesterton

Jardins de Kensington

de Rodrigo Fresán
Edição: Cavalo de Ferro


Robert Fresán inventa Peter Hook, um famoso autor de livros para a infância, que nos conta a sua história. Filho de um cantor de rock e de uma mãe aristocrata e hippie cresceu, em Londres,nos loucos anos 60. A morte prematura do irmão mais novo e dos pais leva-o a refugiar-se no mundo mágico de Peter Pan e à obsessão pelo seu criador, o escritor James Mattthew Barrie. Ao longo do livro as biografias de Peter Hook e de J. M. Barrie desenrolam-se como se estivessem ligados pelo mesmo destino. Confundem-se as sensações, as vidas, as leituras de Peter Hook e de Barrie; como, por exemplo, “A Ilha do Tesouro” lida por Hook , impossível,cronologicamente, de ter sido lida por Barrie. Hook assume e reage ao longo de todo o livro a esta miscelânea da sua infância com a de Barrie.

O livro é como aqueles sonhos recorrentes e complexos em que vamos acordando e sonhando acrescentando sempre algo ao interminável sonho. Ao acordar sentimos um certo desconforto de não sabermos exactamente se o sonho sonhado foi bom ou mau. Alguns detalhes são difusos e podemos depois de acordados interpretá-los à luz da razão e decidir que são maus embora no momento do sonho o não parecessem, ou o contrário. Fica-nos a dúvida se a maldade estará na nossa interpretação se no sonho.

O livro é um culminar de um aturado trabalho de pesquisa de Rodrigo Fresán sobre a vida e obra de J. M. Barrie. Mesmo que o próprio autor garanta que não foi sua intenção biografar Barrie todos os detalhes são apresentados com o rigor de quem mergulhou na vida e na obra do criador de Peter Pan, intercalando referências e reflexões extremamente interessantes e pertinentes sobre a infância, os livros, a leitura e a escrita.

Muitas coisas se decidem na infância. Ter uma infância é bom. Regressar sabe bem. É bom ter um lugar onde regressar mas é preciso crescer. As crianças precisam de uma matriz de carinho que as proteja. A Terra do Nunca pode ser também a revolta pela ausência de laços de afecto. O livro é excelente, muito bem escrito, que podemos ler como viagem ao passado, como passeio por Londres, como regresso à nossa própria infância ou às que vamos construindo nesses regressos.

James Mattthew Barrie nasceu em 9 de Maio de 1860, o menor de uma dezena de filhos de Margaret Ogilvy. É um miúdo franzino que aparece nas fotografias de família como figura esboçada como se sem força para fixar a sua imagem no papel, contrasta com a imagem da mãe: “…firme e forte como doce déspota, mãe profissional…”.

A morte de David, o irmão mais velho, num acidente marcará para sempre Barrie e também Margaret que passará a aparecer nas fotografias de olhar perdido, como uma figura translúcida. Barrie dirá, acentuando o impacto sentido aos sete anos com a morte do irmão, “nada de importante acontece a um homem depois de fazer doze anos” Depois da morte do irmão “Barrie entra no quarto da mãe, sempre às escuras, como se entrasse numa gruta de tesouro ou numa tormenta em alto mar.” A fuga da imagem da morte leva-o a refugiar-se nos livros. “Barrie abre os livros como se fossem janelas, abre livros para abrir caminho à luz de uma história numa vida tão sombria.”

“Os livros como motores mágicos que não deixam de impelir os seus heróis e vilões para novas margens e palácios e é por isso que não convém interromper a sua leitura, pensa Barrie, perde-se tanta coisa quando se fecha um livro.” (…) “ler é fazer memória e também escrever é fazer memória” (…) “Os escritores não fazem outra coisa para além de recordar algo que lhes aconteceu ou que nunca lhes acontecerá, mas que acontece agora, enquanto escrevem introduzem-se nas recordações de quem lê até já não saber onde começam umas e acabam outras.”

A tinta tornada elixir da vida eterna: “Se existe algo melhor que ser escritor é ser personagem.” Pensa Barrie e eis que um dia Peter Pan voará com tal pensamento, num repetido : “Não crescerás. Não crescerás. Não crescerás…”

Barrie é confrontado com o desencontro do afecto da mãe. Quando o abraça ele sente o abraço como uma busca de David, o outro filho morto. E caminhamos um caminho de tentativas de acerto dos afectos, de libertação dos fantasmas. E o mergulho nos livros como fuga. Um dia, recordaremos as vidas que lemos mais que a vivida ou uma terceira vida fusão de todas.

“Bem-aventurados aqueles que leram muito durante a infância porque deles, talvez, nunca será o reino dos céus; mas poderão aceder ao reino dos céus dos outros, e aí aprender as muitas maneiras de sair do próprio inferno graças às estratégias não fictícias de personagens de ficção.” Um elogio da leitura que só serve para os adultos. Porque não podemos aconselhar-nos durante a própria infância, mergulhar no rio e vê-lo correr. Crescemos. Felizmente, crescemos e só fazendo-o podemos ser porto seguro de outras infâncias.

Também Peter Hook perde um irmão… A sua vida e a de Barrie segue caminhos paralelos e intercepta-se, por vezes, parecendo uma mesma vida. Na infância de Peter Hook, passada nos loucos os anos sessenta, no mundo da música, aparece uma espécie de “Neverland” repleta de drogas e Rock and Roll, onde Bob Dylan, John Lennon, Kubrick e tantos outros músicos e artistas entram como heróis dos “lost boys”.

É, também, interessante a reflexão que nos propõe sobre os pequenos heróis da literatura do século XIX: Oliver Twist, Alice, Little Nell… A época em que a mortalidade frequentemente imortalizava a infância. A infância foi a grande descoberta e preocupação do século XIX. A juventude o património dos livros do século XXVIII e a adolescência a descoberta do século XX. Teremos a velhice a marcar o século XXI? Seremos velhos e saudáveis mas desesperados por não termos aprendido a viver, inteiros e felizes, essa maior idade que a ciência nos ofereceu?

Encontramos Barrie e a mulher, a elegante Mary Ansell, passeando em Kensington Gardens. Barrie crescido mas ainda pequeno quase perdido num descomunal casaco. Um adulto num corpo de criança, uma criança num corpo de adulto. Peter Pan por escolha ou por desígnio da natureza? Podemos reflectir sobre isso. É em Kensington Gardens que Barrie encontra os filhos de Sylvia Llewelyn Davies e não consegue resistir ao fascínio por aquelas crianças. Sente-se com elas no seu mundo mais do que nos aborrecidos jantares de sociedade que o seu estatuto exige que frequente. Fresán leva-nos de visita aos salões onde no final dos jantares os homens deixam as senhoras e vão para a biblioteca fumar. Fumar, não ler, quando muito comentar o livro da moda: “Drácula”. Barrie leu-o como um conto de fadas para adultos, comovido pelo personagem malvado e eternamente jovem e impressionado, também, por saber que Bram Stoker se recusou a andar até aos seis anos ou que é membro de lojas maçónicas. Barrie pergunta-se como serão essas lojas secretas imaginando uma recriação de uma Terra do Nunca para crescidos.

É num desses jantares que conhece Sylvia Llewelyn Davies e que se torna visita de sua casa. Hook leva-nos a questionar se tal acontece por acaso ou por cálculo. E Neverland começa a desenhar-se. Bem como Peter Pan inspirado no pequeno Peter Davies…

Mais uma vez seguimos o paralelo do modo de amar de Hook e Barrie na exaltação do amor platónico renunciando ao corpo como quem renuncia a viajar pelos aos incómodos das viagens. Um perfeito e sublime amor pelas crianças e por sua mãe, sem corpo, presume-se.

Frésan leva-nos numa incursão pela vasta e desconhecida obra de Barrie, pelas reacções que colhe junto do público e por todo impacto que têm na recriação da sua ideia de infância, de felicidade, de afecto tomado na admiração dos seus pequenos George, Jack e Peter. Barrie vicia-se nos irmãos Davies, precisa deles como de um medicamento para a vida para a sua escrita.

Fazemos uma viagem no tempo cheia de referências musicais e um passeio por Londres onde Fresán esteve apenas de passagem. É curioso como a escrita nos permite estar onde nunca estivemos, levados por alguém que nunca lá esteve e no entanto depois de lermos qualquer um de nós se poderá sentar a olhar a estátua de Peter Pan, aparecida, misteriosamente, na noite de 13 de Abril de 1912, em Kensington Gardens, com aquela sensação de “eu já aqui estive” que só uma boa escrita nos proporciona.

“A vida é breve, a morte é duradoura. (…) A morte é fértil. Semeia mortos e colherás fantasmas.” A morte de Sylvia proporciona a Barrie mais fantasmas: mães que regressam à procura dos filhos. Ao longo da leitura extraordinariamente absorvente deste livro por vezes fica a pairar uma espécie de fantasma sobre um coração de mãe. Do meu pelo menos, uma mãe nunca deixa de ver o mundo filtrado por essa marca impressa de permanente protecção dos seus filhos.

Não pensamos muito no assunto quando olhamos para a história de Peter Pan ou de Alice no País das Maravilhas. Barrie e Dodson, passaram mais ou menos incólumes sobre os ecos das suas motivações ao relacionarem-se com crianças. Mas, de facto, penso ao ler que não sei, exactamente, que relação teve ou quis ter Barrie com aqueles miúdos. E quando leio o que ele escreveu em “Little White Bird” acerca dos fantasmas de mães a deslizar pelas casas velhas a verificar como estão os seus filhos não consigo deixar de ver uma espécie de peso de consciência de Barrie sobre o outro lado do zelo com que rodeou os irmãos Davies, a ponto de alterar o testamento de Sylvia para ficar a cuidar deles. E fica a pairar a razão porque o faz. Porque dobra o destino para herdar os seus “lost boys”. Por nenhuma razão reprovável, podemos pensar e querer acreditar.

Mas nada como um afecto forte de mãe para que as crianças, tentados com promessas de um Peter Pan para voar pela janela, não façam viagens sem retorno. Só muito tarde Barrie compreende que as crianças querem ser adultas e só os adultos querem não envelhecer e regressar à infância. Nenhuma criança quer, saudavelmente, ser prisioneira da infância. É preciso crescer para quer regressar.

Peter Hook vê o filme “Finding Neverland”, que o autor, Rodrigo Fresán, também verá no final da escrita do livro. No filme Barrie aparece redimido por um Jonnhy Deep, um Barrie por fim alto e bem parecido. Que seria de Peter Pan se Barrie tivesse crescido alto e forte e bem parecido? Existiria? Somo todos uma amálgama mais ou menos bem amassada de infância…

Com a morte de George, filho mais velho de Sylvia, Barrie ganha mais um fantasma e pontos em comum com Conan Doyle e Rudyard Kipling, também eles perderam um filho. E Kipling que, tal com Barrie não acredita na vida para lá da morte, carrega, como ele, uma dor mais cruel, sem mistério nem redenção.

James Matthew Barrie morre a 19 de Junho de 1937, com 73 anos. Curiosamente, quis ser enterrado ao lado do pai e da mãe, das irmãs e do irmão David que nunca esqueceu. É enterrado num pequeno caixão tão leve que aos coveiros parece estar vazio. Tal como o de Baco, irmão de Peter Hook que não cresceu.

Barrie é enterrado, Peter Hook também, suicida-se atirando-se para a frente de um comboio logo no início desta narrativa e nos obriga a lê-la para descobrir quem era, quem são todos os povoam os livros que lemos e se tornam os fantasmas que umas vezes nos assustam e outras vezes nos fazem companhia. Afinal somos todos “lost boys”/”lost girls” em busca de afecto. Sílvia Alves.

1 comentário:

Mariana disse...

"Young boys should never be sent to bed. They always wake up a day older."