terça-feira, 31 de março de 2009

Antígona no século XXI



Reler um texto clássico decorridos 35 anos dá-nos uma perspectiva, ainda que muito pessoal e limitada, do mistério da sua prevalência. Recordo-me também da alegada surpresa de Marx relativamente à capacidade que os textos de Sófocles, Shakespeare e outros têm de manter intacta a sua força dramática apesar de se terem dissipado os conflitos económicos e sociais em cujo contexto foram concebidos.

Para além do milagre da sua sobrevivência literária, Antígona de Sófocles é um texto misteriosamente contemporâneo. Para prová-lo sucedem-se edições, estudos e representações desta peça, provavelmente escrita em 442 a.C., e que nos relata como a pungente tragédia do parricida e incestuoso Édipo se estende à sua descendência.

A trama é bem conhecida:

Polinices e Etéocles, filhos varões de Édipo, morrem às portas de Tebas, um pela espada do outro. Polinices havia formado uma aliança com os guerreiros de Argos para derrubar a tirania do tio Creonte, irmão de Jocasta, mãe e esposa de Édipo. Em nome da defesa e coesão da polis, Creonte concede a Etéocles honras duma sepultura de estado, e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem as devidas homenagens fúnebres.

Recai assim sobre a consciência das irmãs de Polinices, Antígona e Ismênia, o dilema de acatar a lei imposta por Creonte ou seguir a lei divina, não escrita, de que as mulheres da família (e não só, como se verá) honrem os seus mortos. Antígona escolhe seguir a lei divina e convida Ismênia a secundá-la no cumprimento dos rituais fúnebres. Ismênia, temendo a reacção de Creonte, tenta dissuadir a irmã e não toma parte na desobediência.

Sem temer as consequências, Antígona cobre o cadáver de Polinices com uma fina camada de poeira. A notícia de que o decreto de Creonte fora violado não tarda a espalhar-se e Antígona é descoberta. De modo a evitar um derramamento de sangue que poluiria a polis, Antígona é condenada a ser emparedada viva. Entrementes, o obstinado Creonte é advertido pelo vidente cego Tirésias que por atentar contra as leis divinas, a ira dos deuses recairá sobre a sua própria descendência. Ciente da decisão de Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, de morrer com a sua amada por não conseguir demover o pai e salvar Antígona, o velho Tirésias acaba por convencer Creonte da inevitável maldição dos deuses. Creonte decide então sepultar Polinices e dirige-se à gruta onde Antígona fora aprisionada para libertá-la. Mas ao chegar ali ouve um grito de dor e descobre Hêmon junto ao corpo de Antígona que se havia enforcado com o próprio cinto. Hêmon responsabiliza Creonte pela morte da amada e desfere-lhe um golpe de espada. Creonte esquiva-se do golpe, mas de seguida Hêmon crava a espada contra si mesmo. Creonte desolado toma o filho nos braços e leva-o para seu palácio. Mas, a notícia do triste desenlace é mais rápida, de modo que ao chegar, encontra Eurídice sua esposa, já sem vida, vítima também de um golpe de auto-mutilação. A rainha morre culpando o marido pela morte do filho. Ao rei amaldiçoado cabe a infelicidade de sobreviver à tragédia e viver sob o signo do desejo da própria morte.

Como nos faz saber a Professora Maria Helena da Rocha Pereira através das notas explicativas que acompanham o texto da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, não há consenso entre os estudiosos relativamente ao verdadeiro tema da tragédia: Conflito entre o amor ideal da família, praticado por Antígona, e a lei do estado incarnada por Creonte, conforme Hegel?; Embate de vontades, de acto contra acto, ou de princípios civilizacionais distintos, segundo outros estudiosos?; Conflito entre a moralidade privada contra a do estado?; Defesa da fundamental liberdade e autonomia da vontade individual na sua relação com a polis?

Penso que estas interpretações são todas correctas, pelo menos segundo a hierarquia de valores de suas premissas. Contudo, esta hierarquia não é necessariamente a mesma da dos tempos de Sófocles, e suponho que nunca será possível sabermos ao certo qual o grau de proximidade entre valores éticos em períodos históricos distintos. Mas a universalidade da temática e a intemporalidade do conflito não nos deixa indiferentes. A leitura de Antígona comove-me hoje como me comoveu há 35 anos. Certamente, não pelas mesmas razões, o que me faz pensar que as diversas interpretações da tragédia sejam todas complementares.

Tal como muitos estudiosos, julgo que para além das figuras, uma parte essencial da trama é desempenhada pelo Coro. Vacilante e ambíguo na sua posição, o Coro apoia inicialmente o decreto de Creonte, mas muda de opinião depois da admoestação de Tirésias. Esta oscilação parece-me ser a chave, pois está implícita na muito explícita e bela “Ode ao Homem” que se inicia da seguinte forma:

“Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.”

Uma inequívoca afirmação da superioridade do ser humano, e que prossegue com a enumeração de vários marcos de progresso, a agricultura, a domesticação dos animais etc, culminando com a ciência de viver em sociedade e com a do uso da palavra não corrompida, na sua forma mais pura: a da arte política. Mas parece-me haver nas entrelinhas desta homenagem à polis, uma mensagem. A ideia de que a polis transcende o poder político e que só é verdadeiramente superior ao incorporar a compaixão e a humanidade de forma integral. Só assim se compreende as razões pelas quais as leis da polis não podem estar acima das leis da compaixão e das leis não escritas. Só assim a polis é o maior dos prodígios.

Mas quanto ao drama das figuras, Sófocles parece não deixar dúvidas: recai sobre os que sobrevivem o maior sofrimento.

Orfeu B.


2 comentários:

Anónimo disse...

Quando tive a oportunidade de "ver" pela primeira vez as jóias usadas pelos Egípcios assim como todos os utensílios de um dia a dia, no museu Metropolitan em NY, não consegui deixar de pensar "e julgamos nós que somos muito diferentes dos que nos antecederam.... nós apenas reciclamos as mesmas ideias com técnicas mais apuradas"....

Claro que este pensamento automático não faz a homenagem que se impõe à evolução da nossa própria humanidade. Não em relação ao que sentimos individualmente mas do como aprendemos a respeitar o outro e a sentir pelo outro.

Tudo isto me ocorre depois de ler este texto magnífico.
Não só sinto a paixão do leitor pelo próprio livro assim como uma reflexão profunda sobre a dor de viver e resistir quando cada um de nós sabe que não poderá vencer a morte. E de como as nossas leis ainda são tão bárbaras...

O nosso maior "fardo" que por vezes se reflecte numa certa loucura colectiva parece-me ser a tentativa de disfarçar esta verdade suprema: por mais que façamos durante a nossa vida, a morte será certa. A nossa revolta grita surdamente: "Porquê?".

Para piorar a nossa própria existência, mas com o poder de nos esquecermos desta dor, criamos leis sempre incompletas para nos manter num rumo "civilizado"... ou pelo menos "civilizado" para os que convivem temporalmente com as mesmas....

Quando será que nós individualmente aceitamos pacificamente a nossa temporalidade colectiva e nos deixamos ser realmente Humanos? Humanos para dentro e para fora, para com os outros? Nas nossas leis. Quando ? ...

Um grande abraço e obrigada por este texto.
Verónica

Anónimo disse...

Encanta-me sua leitura, sua escrita, mi hermano.