quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A HISTÓRIA E A FICÇÃO



O meu amigo Zé Jorge Letria disse-me uma vez que a sua preocupação é ser eficaz. E ele é eficaz com muita frequência. Jornalista de origem, leitor indefectível, a sua memória e a sua organização de trabalho permitem-lhe acumular uma imensa quantidade de conhecimentos que depois articula, potencia, transporta do mera quadrícula do conhecimento para o voo da criação ficcional, dando-lhes assim uma beleza e uma eficácia que atingem frequentemente uma enorme intensidade emocional.

Fernando Pessoa adorou (talvez a palavra seja excessiva) ou admirou quase até ao limite a figura de Sidónio, a quem chamou o Presidente-Rei e em quem viu um D. Sebastião aparecido de um nevoeiro de confusão civil para salvar uma pátria exausta.

Sidónio Pais é sem dúvida uma notável figura dos anos 20 em termos nacionais e internacionais, tendo-se tornado num modelo estudado e seguido por alguns dos ditadores que estavam a nascer pela Europa sob as diversas variantes do fascismo, como foi, nomeadamente, o caso expresso de Benito Mussolini.

Idolatrado ou odiado por homens, Sidónio era amado pelas mulheres. A sua figura sofisticada, autoritária, distante, alimentava sonhos e desejos impossíveis

Curiosamente, no filme de Ettore Scola “Una giornata particolare”, a protagonista (Sofia Loren), sofrida dona de casa italiana nos anos 30, mostra igual fascínio por Mussolini de quem recorta e guarda fotografias e notícias num acto de devoção excessivo e deslocado.



O Zé Jorge cria neste romance uma voz que, caminhando para a frente e para trás no tempo, dá espessura à figura do ditador que se torna em muito mais que uma simples figura da História, um ser humano com medos, inseguranças, sonhos, desejos, um homem que sonha para si um desígnio que vai naufragar nos dois tiros com que será assassinado.

Uma promessa de tragédia envolve Sidónio como envolve a cidade num tom de desgraça e fado.

José Jorge Letria vai-nos deixando entrever a vida da Lisboa da época onde reinam miséria, violência e morte ( guerra e a epidemia da gripe “espanhola”), onde a permanente revolta das classes trabalhadoras abandonadas pelos políticos republicanos produz confrontos diários, onde a classe política se envolve num jogo decadente de conjuras e conluios, e onde, por cima da tragédia de Sidónio, se anuncia uma outra ditadura chegada do mais profundo e retrógrado soa de dentro do Portugal rural.

Que mais dizer senão que é bom visitar a História assim para melhor a sentir e respirar, ou seja, para melhor a conhecer?

Sem comentários: